Sigmund Freud inicia o primeiro capítulo de Totem e Tabu (1913), cujo objetivo é investigar o horror ao incesto, com a explicação sobre a importância das mitologias, lendas e dos contos de fadas, acreditando serem estas reminiscências dos saberes, das artes e religiões dos homens pré-históricos (FREUD, 2012, p. 17-18). Os mitos seriam, portanto, uma forma de linguagem simbólica utilizada para expressar desejos e conflitos inconscientes e primitivos, tal como Freud já havia afirmado uma década antes em A interpretação dos sonhos (1899), ao citar a tragédia grega de Sófocles, Édipo Rei, com intuito de ilustrar sua teoria de que os sonhos são realizações de desejos. Seria exatamente esse o motivo pelo qual ainda nos emocionamos (FREUD, 2001, p. 262-3) e revisitamos essas antigas fontes de narrativas: elas ainda nos fazem e trazem sentidos.
É possível pensar que uma das maneiras de interpretar a exigência de constante atualização imposta aos indivíduos líquido-modernos, estudada por Zygmunt Bauman, passaria por certa releitura do mito de Orfeu. Em muitas de suas obras, Bauman examina a passagem de uma sociedade de produtores, como era a fase “sólida” da Modernidade, descrita e vivenciada por Freud, para uma sociedade de consumidores, denominada pelo sociólogo polonês de Modernidade Líquida. Esta se caracteriza pela instabilidade, uma vez que já não é mais possível contar com a segurança e os planos de carreira vitalícios que as instituições sólidas ofereciam anteriormente (BAUMAN, 1998, p. 50).
Nesse quadro de instabilidade incessante, faz-se, então, necessária a constante atualização de habilidades e certificações profissionais. Assim se satura a internet de cursos, muitos de qualidade duvidosa, sobre assuntos específicos e minuciosos de cada profissão. Fenômeno que se intensificou durante a pandemia de Covid-19, quando muitos trabalhadores tiveram de se reinventar para adaptarem seus serviços ao mundo digital e híbrido.
Um dos efeitos da alta exigência de habilidades e certificações foi a transformação da convivência dentro do ambiente de trabalho em um terreno perigoso e frágil, repleto de possíveis ameaças, devido à concorrência gerada pelo número crescente de desempregados. Mas, segundo Bauman, essa instabilidade ininterrupta não se dá apenas no âmbito profissional, já que, como ele afirma na introdução de Amor líquido (2003), os indivíduos precisam permanecer em constante movimento de renovação também nos relacionamentos amorosos, pois estes são encarados pelos indivíduos líquido-modernos como uma ambiguidade.
Por um lado, o amor está diretamente ligado ao medo de permanecer “preso” à instituição da família, mas, por outro, há o desejo de estar envolvido em uma relação na qual é possível sentir-se seguro e satisfeito, sem precisar estar em constante atualização e movimento. A dificuldade em lidar com essa ambiguidade e, portanto, o desafio de encontrar um equilíbrio entre segurança e liberdade, é a razão pela qual muitos indivíduos líquido-modernos procuram aconselhamento de especialistas (BAUMAN, 1998, p. 222) para orientá-los em suas decisões e envolvimentos amorosos. As relações humanas deixaram de ser fontes de tranquilidade e certeza e “transformaram-se numa fonte prolífica de ansiedade. Em lugar de oferecerem o ambicionado repouso, prometem uma ansiedade perpétua e uma vida em estado de alerta” (BAUMAN, 2007, p. 93-94). Desse modo, seria cansativo ter apenas de pensar em um cenário de constante renovação, no qual os feitos não se cumulam, os gestos não produzem efeito duradouro e no qual estamos sempre concorrendo, tanto contra outros, como também contra nossas próprias versões anteriores.
Tendo em vista esse aspecto, podemos pensar numa aproximação ao mito de Orfeu e em sua apropriação, tal qual como contado pelo poeta romano Ovídio (43 a.C.- c.18 d.C.) nas Metamorfoses.
Conta-se que Orfeu – cuja origem frequentemente remonta a uma figura divina, sendo ora apresentado como filho do deus Apolo, ora como de Calíope, musa da poesia épica – era um poeta e músico notável, cujas obras impressionaram até mesmo os deuses. As poesias e as canções de Orfeu eram tão belas que encantavam pessoas e acalmavam feras selvagens. Foi ele o responsável por salvar Jasão e os argonautas das terríveis sereias, ao superar com suas próprias composições o canto daquelas criaturas mágicas, o que impediu que mais marinheiros se jogassem ao mar e, com isso, a missão pudesse continuar.
No entanto, Orfeu é possivelmente mais conhecido por outro feito, a saber: a descida ao mundo dos mortos em busca de sua recém-falecida esposa, Eurídice. Desolado com a perda da amada, Orfeu desce ao reino de Hades, a fim de encantar o rei do Submundo em pessoa por meio de seu triste canto de apelo para ter sua esposa de volta. É-lhe concedido retornar com a jovem, sob a condição de que ele não olhe para trás para vê-la, até que ambos sejam tocados pela luz do sol, mas Orfeu “ansioso para contemplá-la, cheio de amor, volta para ela os olhos, e Eurídice retrocede logo, e estende os braços, para agarrar-se a Orfeu, e, desventurada, não encontra mais que o ar inconsistente” (Ovídio, 1992, X, p. 185). Orfeu, atingido duas vezes pela morte da esposa, afasta-se do amor das demais mulheres e muda o tom de suas canções, as quais se tornam cada vez mais melancólicas. Apesar de todos os seus grandes feitos, de todas as poesias e canções veneráveis que havia produzido ao longo de sua vida, o luto de Orfeu não é perdoado, e isso o leva a ser assassinado brutalmente.
Ao vê-lo sozinho dedilhando as cordas de sua lira, um grupo de bacantes – mulheres que cultuavam o deus do vinho e dos excessos, Baco –, atiram pedras e depois avançam contra o poeta-músico, matando-o e esquartejando-o. As bacantes agem dessa forma por se sentirem desprezadas como mulheres e por não tolerarem a indiferença de Orfeu para com os rituais que promoviam a ebriedade e a sexualidade, dos quais elas eram sacerdotisas. Com isso, o cansaço de Orfeu, após a sua tentativa falha de recuperar sua esposa, não é respeitado. Sua fama, seus feitos anteriores não justificam o tempo de seu luto, ainda que duplicado. Assim, seria possível ler a passagem como um conflito entre um triste poeta sóbrio que encara seu fim, diante de hedonistas que não toleram uma vida voltada apenas para a reflexão – ou teria sido apenas uma fase? Não saberemos.
Num modus operandi freudiano, esse mito tem o poder de nos ajudar a refletir sobre o mundo atual e a sua constante exigência por movimento e renovação. Talvez tenhamos, em certo nível, um saber reminiscente e ancestral, como sugeriu Freud, de que a regeneração e o aprimoramento são movimentos necessários para a vida. Seria possível conjecturar a existência, para os indivíduos líquido-modernos, de um medo atávico em relação às consequências imprevisíveis decorrentes de um período de isolamento e desconexão do mundo físico – e agora também digital –, tal como aconteceu com Orfeu? Seria possível dizer que tal medo impulsionaria esses indivíduos a seguirem em frente, a despeito do peso de um luto ou de sofrimentos de outra natureza, como, por exemplo, os causados pela pandemia de Covid-19, pela quarentena, por crises econômicas e políticas e pelas incertezas em relação ao futuro individual e global?
O descanso e a pausa tornam-se lugares desconhecidos e temidos, não se sabe o que nos espera de seu retorno, e, por isso, tornam-se aos poucos temas místicos e experiências transcendentes em um mundo no qual o trabalho atravessa as fronteiras da família, dos relacionamentos e do self digital. Foi só em seu descanso final que Orfeu reencontrou sua esposa e “ora caminham juntos com o mesmo passo, ora ela vai à frente e ele atrás, ora ele caminha primeiro e ela o segue, e, sem perigo, Orfeu volta os olhos para contemplar a sua Eurídice” (Ovídio, 1992, XI, p. 202). Resta aos indivíduos líquido-modernos a coragem – além de todas as funções cruciais que já assumem desamparados – de olhar para trás buscando contemplação.
[Revisão de Pedro Silva e Bruno Ibanês. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2007.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11 : Totem e tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914) / Sigmund Freud; tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
OVÍDIO. As metamorfoses. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983.
O artigo é o sétimo da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.
- Democracia e a humanidade dos outros, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/11/democracia-e-a-humanidade-dos-outros/.
- Culpa e consciências limitantes, de Luiz Augusto Flamia e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/18/culpa-e-consciencias-limitantes/.
- Monzani e a filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues, Paula Entrudo e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/25/monzani-e-a-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Como abordar textos filosóficos?, de Natasha Garcia Coelho e Paula Entrudo, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/01/como-abordar-textos-filosoficos/.
- Engajamento e crise: os desafios científicos que a filosofia enfrenta no mundo contemporânea, de Pedro H. C. Silva, Ilker Luiz Alves Batista e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/08/engajamento-e-crise-os-desafios-cientificos-que-a-filosofia-enfrenta-no-mundo-contemporaneo/.