A obra do escritor norte-americano Raymond Carver (1938-1998) passou a ser mais conhecida no Brasil na década de 1990, na esteira do sucesso de Short cuts (1993), filme de Robert Altman baseado numa coletânea de contos do autor – à época, a Rocco publicou esse livro de Carver no país com o mesmo título do filme. Essa coletânea, lançada em 1981 e cujo título original era What we talk about when whe talk about love, rendeu a Carver o epíteto de “minimalista”, em virtude da curtíssima extensão das narrativas nela reunidas.
Mais tarde, ficou-se sabendo que aquele traço considerado um dos mais marcantes de Carver – os textos concisos, mas plenos de densidade – havia sido forjado em parte por seu editor, Gordon Lish, que suprimira páginas inteiras dos contos, conferindo-lhes o formato enxuto que despertou tanto entusiasmo junto à crítica e aos leitores. Em 2008, saiu nos Estados Unidos um volume contendo a versão integral dessas histórias de Carver, conforme o manuscrito enviado pelo contista à editora Knopf em 1980. Intitulado Iniciantes, o livro foi publicado no ano seguinte no Brasil pela Companhia das Letras.
Para quem leu e apreciou Short cuts, a experiência de percorrer as páginas de Iniciantes é ao mesmo tempo uma surpresa e uma redescoberta – como se fossem reveladas novas e insuspeitas facetas de um velho conhecido, sobre quem julgássemos saber o suficiente. Preservados tal como saíram das mãos de Carver, aqueles contos que, na versão do seu primeiro editor, nos tiravam o fôlego com seu rito sumário, como se fossem instantâneos do dia a dia de pessoas comuns, agora nos desvelam outras paisagens, realçam outras nuances, penetram mais fundo nas subjetividades, resultando em uma obra ficcional muito mais sofisticada e complexa. E confirmando também o talento excepcional de Carver como contista, comparado, por muitos críticos, a nomes como Hemingway e Tchekhov.
A qualidade dos contos reunidos na coletânea de Carver é tamanha que é difícil eleger quais são os melhores. Como ilustração, pode-se citar, por exemplo, Cadê todo mundo?, sobre uma família de alcoólatras. O protagonista do conto, o pai dele, a ex-mulher e o seu amante – todos têm trajetórias marcadas pelo vício da bebida. Carver não faz nenhum julgamento moral, apenas descreve com sobriedade e um certo distanciamento a condição solitária dessas pessoas, já anunciada pelo irônico título da história.
A morte comparece como o tema de duas narrativas. No comovente Uma coisinha boa, um casal de classe média cujo cotidiano até então havia sido poupado de grandes infortúnios se vê de repente obrigado a conviver com a terrível possibilidade de perder o único filho, por conta de um acidente aparentemente banal. O personagem de um padeiro raivoso só acentua o clima de absurda irrealidade no qual se vê subitamente mergulhado o casal protagonista, que dolorosamente vai tomando consciência do quanto eram frágeis as bases sobre as quais se assentava a sua felicidade burguesa.
Em Tanta água tão perto de casa, é a descoberta do cadáver de uma garota que expõe o caráter truculento e machista de uma pequena comunidade interiorana nos EUA. Um grupo de velhos amigos viaja para um fim de semana de pescaria e, assim que chega ao acampamento, se depara com o corpo de uma jovem flutuando sobre as águas. A reação deles diante da cena é a mais brutal indiferença: a moça assassinada é vista apenas como um entrave ao seu planejado fim de semana de lazer, e eles resolvem permanecer no local, fisgando tranquilamente os peixes. Só no retorno à cidade é que comunicam o crime à polícia. Diante do trágico destino da menina, apenas a mulher de um dos pescadores é capaz de sentir alguma compaixão pela vítima – e essa reação surge acompanhada de um profundo sentimento de repulsa pelo marido cuja crueldade lhe havia até então sido ocultada pela sua fachada bonachona.
De todas as histórias reunidas no livro, a mais pungente delas é, sem dúvida, a que dá titulo à coletânea, Iniciantes. Nessa narrativa, um homem e uma mulher apaixonados, durante uma conversa de início trivial e amigável com outro casal mais experiente e calejado, começam a se dar conta de como a sua relação é tênue e pode se romper a qualquer momento – o amor, em Carver, é quase sempre transitório e fadado ao fracasso.
Os contos de Raymond Carver em geral começam a partir de situações prosaicas, envolvendo tipos anônimos – “caipiras de shopping”, como seu primeiro editor nomeou os personagens criados pelo autor –, as quais se encaminham para desfechos dramáticos, quando não trágicos. Não há heroísmo e muito menos romantismo nestas histórias protagonizadas na maioria das vezes pelos losers, os fracassados e marginalizados que não conseguiram um lugar ao sol na terra do sonho americano. Mas apenas a realidade ordinária da vida cotidiana, com suas pequenas alegrias e misérias, que o olhar de Carver capta com extrema sensibilidade artística.