[Coautor: Pedro H. C. Silva[1]]
A filosofia contemporânea é marcada pela diversidade de pensamento. Sua abertura para interesses e diálogos com outros campos do saber, como as artes, a história, a literatura, a psicologia e a psicanálise, fez com que a filosofia deixasse de ser o centro de todos os saberes e passasse a necessitar da interdisciplinaridade, o que favoreceu a sua ramificação.
A psicanálise, por exemplo, embora seja recebida pela filosofia sob a exigência de ser enquadrada no modo tradicional da racionalidade ocidental, e apesar das resistências por parte de alguns filósofos e cientistas, se faz presente em toda a literatura filosófica do século XX. Em muitos casos, mesmo atribuindo à psicanálise uma grande importância, a filosofia se mantém crítica em relação a ela, e essa relação ambígua entre filosofia e psicanálise tem despertado o interesse de filósofos do mundo todo. Especialmente os filósofos brasileiros têm se dedicado a estudos, pesquisas e ao desenvolvimento de trabalhos voltados para uma filosofia da psicanálise, pesquisas estas que resultam da ampla recepção filosófica que a invenção freudiana obteve no interior do campo da filosofia. Mas é importante ressaltar que nem toda recepção filosófica da psicanálise significa, no sentido forte do termo, uma filosofia da psicanálise. O que é, então, objetivamente, uma filosofia da psicanálise?
Desde o início, o pensamento psicanalítico é interdisciplinar, ou seja, interage com outras disciplinas, ainda que com dificuldades para estabelecer essa interlocução. A partir disso é possível observar outras ciências, como, por exemplo, a biologia e a sociologia – mas não somente estas –, sendo influenciadas pela teoria psicanalítica, o que forneceu, de certa forma, uma revisão metodológica e epistemológica das ciências do homem de modo geral. Embora a teoria psicanalítica seja severamente criticada por alguns filósofos que não aceitam o inconsciente proposto por Freud, não há formas, nem mesmo filosóficas, de negar a limitação da consciência humana.
Ao longo de todos os anos desde o surgimento da psicanálise, tanto filósofos quanto psicanalistas emitem e recebem críticas em relação às suas pesquisas, pensamentos e teorias. Ainda que Freud tenha evitado o contato direto com a filosofia, ele não pôde excluí-la totalmente, recorrendo, ele mesmo, a alguns filósofos, como vemos em várias citações ao longo do desenvolvimento de sua teoria.
Com efeito, dessa relação entre a filosofia e a psicanálise, surgiu um novo campo filosófico, a filosofia da psicanálise. Trata-se de uma interlocução entre esses dois campos, sem que uma teoria se submeta à outra, ou seja, não é uma mera relação ou simples conciliação de posições, mas sim uma articulação entre as duas disciplinas. Especialmente no Brasil, observa-se um grande movimento de filósofos que têm se dedicado ao estudo histórico da recepção da psicanálise no país e que têm realizado pesquisas referentes ao método de pensamento por meio do qual a filosofia da psicanálise se define, produzindo resultados tangíveis que vão além dos interesses puramente filosóficos.
Além disso, autores contemporâneos internacionais desenvolveram e continuam desenvolvendo trabalhos, não somente complementares à teoria clássica de Freud, mas paradigmáticos, como é o caso do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971), que, por meio da sua atuação como pediatra, com a observação de bebês e suas mães, propõe a teoria do amadurecimento pessoal, reforçando a importância do ambiente para o desenvolvimento saudável do indivíduo. Zeljko Loparic (1939-), filósofo naturalizado brasileiro, é uma das principais referências a respeito dessa recepção filosoficamente paradigmática da psicanálise winnicottiana. Ele apropriou-se do viés desconstrutivo de Martin Heidegger (1889-1976) para criticar e rejeitar o naturalismo freudiano (FREITAS PINTO, 2021).
Para o filósofo Weiny Freitas (2018), também brasileiro, há duas importantes tarefas relacionadas à recepção filosófica da psicanálise, sendo a primeira o relato da sua própria história e a segunda a demonstração do seu método. Embora a filosofia da psicanálise tenha como um dos objetivos “proteger” a psicanálise da filosofia, entende-se que essa disciplina também “protege” a psicanálise dela mesma. Isso devido à rigidez institucional em relação à teoria e à prática psicanalíticas, propagadas por várias correntes, principalmente a freudiana e a lacaniana, que, em geral, tendem a desconsiderar os avanços propostos pelas diferentes escolas psicanalistas pós-freudianas.
A partir das considerações expostas, é possível pensar a filosofia da psicanálise como uma abordagem que resguarda a psicanálise dos abusos da filosofia e que adverte acerca de possíveis excessos e distorções das interpretações filosóficas. Nesse sentido, na atitude de resguardar a psicanálise, a filosofia da psicanálise promove um espaço de avanço da teoria psicanalítica. Para o aprofundamento desse avanço é preciso, todavia, divulgação desse campo filosófico brasileiro de pesquisa, para que seja gerado maior interesse de estudiosos e pesquisadores pelo desenvolvimento de trabalhos sobre a recepção da psicanálise, principalmente no Brasil. Somente assim a filosofia da psicanálise irá se consolidar, de fato, como disciplina.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
FREITAS PINTO, Weiny César. Notas para uma sistematização histórica da recepção filosófica da psicanálise no brasil. Nat. hum., São Paulo, v. 20, n 2, 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302018000200009. Acesso em: 22 abr. 2023.
FREITAS PINTO, Weiny César. Por uma história e método da recepção filosófica da psicanálise: esboço de um programa de pesquisa. Revista de Filosofia Aurora, [S. l.], v. 33, n. 58, 2021. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/6733/673373986019/html/ Acesso em: 18 abr. 2023.
[1] Graduando em Filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
O artigo é o oitavo texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.