Desnecessário exaltar a poesia de Manuel Bandeira, solidificada como está no cânone literário brasileiro. Outra face do autor, todavia, se descortina em rápida consulta aos Meus poemas preferidos, organizados por ele a fim de tornar acessível “o essencial e o vário da minha produção poética” e publicados em 1966. Ora, o Bandeira tradutor de versos foi, além de hábil, prolífico e curioso.
A seção “Poemas traduzidos” vai de São Francisco de Assis a Emily Dickinson, de Bashô a Langston Hughes, de Paul Verlaine a Juan Ramón Jiménez. O pernambucano, defensor da intuição e do gosto pessoal como pedras de toque da atividade tradutória, oferta uma seleção não apenas espontânea, mas muito simbólica. É que “o vário” de sua produção, em específico a fortuna de traduções, vincula uma visão ecumênica de poesia, em que a boa literatura é universal e erige um monumento de valia inestimável, onde as barreiras idiomáticas são insignificantes se se almeja a difusão do deleite do verso.
Pois bem. O contraponto mais perfeito é Robert Frost, sumidade de outro modernismo, o estadunidense. A ele são atribuídas opiniões fortes acerca da lida dos tradutores, as quais podem ser sintetizadas numa célebre sentença: “poesia é o que se perde na tradução”. Ocorre que o poeta de New England tinha em alta conta o sound of sense, isto é, o ritmo que permeia o significado, impossível de ser vertido com exatidão, no bojo de uma composição singular porque circunscrita à língua de origem.
Com efeito, são de Frost alguns dos poemas mais bem-acabados da literatura norte-americana, a ocuparem cadeiras cativas no inventário cultural de lá. Mutatis mutandis, “The road not taken” é tão ou mais popular que “Vou-me embora pra Pasárgada”. Um artesão da palavra como poucos, capaz de instruir a forma com uma filosofia profunda e, por conseguinte, fazê-la cantar mensagem rara. Um dístico como “Heaven gives it glimpses only to those/ Not in position to look too close” ecoará na mente do leitor enquanto dure a vida.
O que nem todos sabem é que o embate de perspectivas se tornou palpável. Em agosto de 1954, patrocinado pelo U. S. State Department, Frost veio ao Brasil para o Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais, parte das comemorações do quarto centenário da cidade de São Paulo. Além disso, como relata Henry Hart, em The life of Robert Frost: A critical biography, o octogenário poeta declamou na Embaixada Americana no Rio de Janeiro, falou sobre nacionalismo e internacionalismo numa coletiva de imprensa e escutou o grande Manuel Bandeira enaltecê-lo na Academia Brasileira de Letras.
É certo que o pernambucano, responsável por saudar Robert Frost na sessão da ABL de 12 de agosto, teceu loas ao gênio incomum que a honrou com uma visita. Mas a fala integral, abaixo reproduzida conforme edição de 18 de agosto do Jornal do Commercio, disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional, explicita uma queixa em relação ao baixo apreço do norte-americano à atividade tradutória. Manuel Bandeira criticou, com a elegância que lhe era própria, a postura que pode invisibilizar a cultura do continente americano e contribuir para uma série de preconceitos em nível global. A imprensa registrou um agradecimento protocolar por parte de Frost. O mais, a leitura da saudação diz por si.
Para maior informação sobre a estadia do autor no Brasil, merece consulta “Frost’s diplomatic mission to Brazil”, de George Monteiro. A respeito de prejuízos e benefícios tradutórios, Nelson Ascher certa vez escreveu consideração interessante à Folha de S. Paulo, intitulada “Poesia é o que se ganha na tradução”.
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Saudação do Sr. Manuel Bandeira
Caro poeta Sr. Robert Frost. Sinto não saber exprimir na vossa língua – língua que considero o idioma por excelência da poesia – a emoção que me toma ao vos dirigir a palavra para saudar-vos em nome dos meus confrades desta Casa. Tomei, porém, as necessárias providências para que pudésseis compreender o sentido do que vou dizer. Aliás, ainda que nada entendêsseis, haveríeis de sentir nos meus olhos e nos meus gestos a linguagem da minha profunda admiração, e não só da admiração, mas da minha profunda afeição e veneração por um dos maiores poetas que já produziu o nosso continente: admiração e afeição de um homem que encontrou nos vossos livros, desde A boy’s will até Steeple bush, o mais fino e substancial alimento à fome de poesia; de um homem que até hoje se sente comovido até o fundo de seu ser toda vez que relê poemas como “The road not taken”, “An old man’s winter night”, “Stopping by woods on a snowy evening”, “Acquainted with the night” e tantos outros, cuja essência poética nos parece de inesgotável virtude emotiva.
Confesso-vos mesmo que estava inclinado a traduzir para a minha língua alguns deles, seguindo a sugestão de uma vossa compatriota, Elizabeth Bishop, outra grande poeta da América, quando li nos jornais a vossa declaração de que não conheceis a poesia brasileira, porque não conheceis o idioma português e porque não ledes traduções de poemas. Não obstante ter cometido muitas traduções de poemas, concordo convosco em que a poesia é coisa intraduzível. Realmente, como traduzir “Come in”? É thrush music, quer dizer, música inefável.
Caro grande poeta: certa vez o português Eça de Queiroz escreveu, com muita filáucia de europeu, que os americanos jamais concorremos para a obra da civilização do mundo com uma ideia nova ou com uma forma nova. Escreveu isso pelos anos de 73 ou 74. Ignorava o ilustre romancista a obra dos Thoreau, dos Hawthorne, dos Melville, dos Bello, dos Hernandez. Não tomou conhecimento do gênio original e renovador de Whitman, cujas Leaves of grass em 1860 já estavam em terceira edição.
Depois da morte de Eça dois grandes movimentos na esfera da poesia vieram mostrar ao mundo que a América não era a eterna repetidora da Europa; que a América também podia trazer à obra da civilização ideias novas e formas novas: um foi o movimento modernista, que, graças ao gênio do nicaraguense Rubén Darío, renovou as fontes da poesia em língua espanhola; o outro foi o movimento de 1912 em vosso país, o qual revitalizou a poesia da língua inglesa, tão dessorada pelo espírito vitoriano. Fostes, Sr. Frost, uma das grandes vozes desse renascimento poético, e é extremamente significativo que a vossa primeira consagração teve lugar não em vosso país, mas na própria Inglaterra. Sois um magnífico exemplo da força criativa deste continente no domínio da poesia. E é diante dessa força, que, em relação a vossa cara New England, se tem manifestado com intensidade e intimidade verdadeiramente telúricas, que eu me inclino reverente, apresentado o testemunho de admiração de toda esta Casa, que honrais singularmente com a vossa presença.
Muito bom o texto!!