[Coautor: Jonathan Postaue Marques[1]]
Quem são as mulheres que estão à frente das pesquisas em filosofia da psicanálise no Brasil? Não são poucas e seus trabalhos contribuem decisivamente para a consolidação desse campo de estudos no país. A presença da mulher no âmbito da filosofia brasileira da psicanálise será analisada por meio da menção de alguns nomes que compõem o Grupo de Trabalho (GT) de Filosofia e Psicanálise da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), dando especial destaque ao trabalho de Léa Silveira sobre o feminino e Lacan.
Para contextualizar, o GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF foi fundado há mais de duas décadas, precisamente em 2002. A filosofia brasileira da psicanálise intensificou-se no território nacional por meio da consolidação deste grupo de trabalho. Se com obras como, por exemplo, as de Monzani (1946-2021) e de Mezan (1950) – respectivamente, Freud: o movimento de um pensamento (1989) e Freud: a trama dos conceitos (1982) –, temos um início formal desse campo de pesquisa no Brasil, com o tempo, perspectivas diversas ampliaram a qualidade e a variedade de pesquisas realizadas pelos membros do GT. Ou seja, se por meio de Mezan e Monzani, a pesquisa em filosofia da psicanálise se fortaleceu, vale salientar que seus trabalhos são fruto de um período em que esse tipo de pesquisa era embrionário no país, e que já se passaram três décadas desde então.
Tendo isso em mente, seria importante ressaltar que, no escopo de membros do GT, encontram-se trabalhos realizados por pesquisadoras mulheres, como por exemplo, Léa Silveira, que em suas pesquisas tematizou e tematiza o feminismo a partir de autores como Freud e Lacan. Léa representa uma reflexão feminina no ambiente filosófico-psicanalítico.
Léa Silveira integrou, entre 2000 e 2009, o Departamento de Filosofia da UFSCar, um dos centros brasileiros mais proeminentes na intersecção entre filosofia e psicanálise, que à época tinha em seu quadro docente Bento Prado Jr. e Luiz Roberto Monzani. Com eles, uma variedade de referências abriu-se em torno do entrecruzamento da filosofia com a psicanálise, e isso proporcionou a Silveira uma ótima formação. Léa tem uma forma refinada de escrita e excelência no campo de pesquisa. A junção destes elementos moldou seu método de pesquisa e sua maneira própria de análise de textos, autores e autoras (Martins, 2021, p. 377).
Portanto, Monzani (1946-2021) e Prado Jr., (1937- 2007) deixaram uma herança que aumenta e se ramifica, nutrindo trabalhos que apresentam a pluralidade de pesquisas em torno da filosofia da psicanálise. O GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF abriga um grande número de pesquisadoras que desenvolvem trabalhos a partir de uma introdução à psicanálise, ao estudo do feminino no psicanalista Lacan (1901-1981) ou ao problema da relação entre corpo e consciência. Tais pesquisas são marcadas por uma visão feminina dentro de um campo que é predominantemente masculino, fazendo ecoar de diversas formas – e de forma, por vezes, paradoxal – o célebre aforismo de Lacan: “A mulher não existe”. Com esta frase, o psicanalista simultaneamente vincula e separa as relações entre a psicanálise e o feminino.
A psicanálise é formulada desde Freud como uma teoria da sexualidade humana e ela contribui para compreender o que é único à mulher, porém o faz por meio de uma perspectiva patriarcal. Caso o feminismo utilize esse aporte, ele também o denuncia, relatando a violência e a exclusão da mulher como a realidade na qual se inserem os processos psíquicos inconscientes (Silveira, 2020, p. 1).
Trabalhos como o de Léa Silveira são muito importantes. A autora apresenta o debate estabelecido entre a psicanálise – neste caso, lacaniana – e os estudos feministas e de gênero. Suas pesquisas trazem implicações filosóficas sobre a diferença dos sexos. Por meio disso, fica evidente a especificidade do trabalho de filosofia da psicanálise de Silveira, pois ela investiga as implicações filosóficas do campo psicanalítico, trazendo novas perspectivas sobre problemas contemporâneos a partir de um olhar feminino.
No entanto, dentro deste universo de pesquisa, mais especificamente o do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF, não apenas o feminismo é discutido. Diversas pesquisadoras trabalham em torno das obras de Freud a partir de temas como a pulsão de morte ou a teoria freudiana sobre a cultura e a moralidade; também pesquisam a estrutura em Lacan, a história da filosofia da psicanálise, dentre outros trabalhos que debatem e dialogam em torno de temas que estão ligados à psicanálise e ao pensamento filosóficos.
Ou seja, assim como Léa Silveira, existem diversas outras pesquisadoras que contribuem para o desenvolvimento científico, como as membras do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF Amanda Malerba (Unifesp), Carlota Maria Lassalle Ibertis (UFBA), Caroline Vasconcelos Ribeiro (UESB), Cláudia Murta (UFES), Fátima Siqueira Caropreso (UFJF), Fernanda Silveira Correa (Unicamp), Maria Cristina Sparano (UFPI), Suely Aires (UFBA), Alessandra Affortunati Martins (USP), Aline Sanches (UEM), Ana Carolina Soliva Soria (UFSCar), Janaina Namba Pimenta (UFSCar), Josiane Bocchi (Unesp), Maria Vilela Pinto Nakasu (HCI), Patrícia Porchat (Unesp), Alessandra Triaca (PUC-PR), Elsa Oliveira Dias (PUC-SP), Gisele Tiemi de Assis Sugawara (UFLA), Iasmim Cristina Martins da Silva (UFRJ), Isabela Betina Ferreira (UFLA), Izabela Loner Santana (Unicamp), Julia Joergensen Schlemm (PUC-PR), Letícia Campos Silva (PUC-PR), Munique Gaio Filla (UFSCar), Paula Rech (UFRGS) e Petra Bastone (UFRJ).
A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise evidencia a importância da mulher nos dois campos e também em cada um considerado em sua própria autonomia, pois os trabalhos aí produzidos permeiam temas que anteriormente não eram tratados como uma visão genuinamente feminina. Originalmente, a psicanálise é baseada em um olhar masculino que muitas vezes desenvolve visões difusas a respeito do feminino, e isso não pode ser ignorado. Dessa forma, mesmo que a psicanálise se aproxime, sob diversos aspectos, do sentido daquilo que é próprio à mulher e à feminilidade, ainda assim é preciso se desprender da sua moldura patriarcal.
[Agradecemos a Léa Silveira, que generosamente leu este ensaio e nos atendeu quanto a questões de precisão das informações]
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
MARTINS, Alessandra Affortunati. Léa Silveira: olhar microscópico. Eleuthería – Revista Do Curso De Filosofia Da UFMS, Campo Grande, v. 6, n. especial, p. 375-384, mai./out. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/reveleu/article/view/13114. Acesso em: 01 nov. 2023.
SILVEIRA, Léa. Feminismo e psicanálise. Blogs de ciência da Universidade Estadual de Campinas: Mulheres na filosofia, Campinas, v. 6, n. 3, p. 114-127, 2020. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/wp-content/uploads/sites/178/2020/03/PDF-Feminismo-e-psicana%CC%81lise.pdf. Acesso em: 1 nov. 2023.
MONZANI, Luiz Roberto. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.
MEZAN, Renato. Freud: A Trama dos Conceitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
[1] Professor de Filosofia da SED/MS – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o 11º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
Olá, José! Obrigado pelo comentário. Vou fazer apenas algumas colocações para avançar o debate.
O texto é pretende ser justamente apenas uma pequeníssima contribuição para COMEÇARMOS a trazer ao debate público a necessidade de rever o funcionamento da pós-graduação e da pesquisa brasileiras. A ideia central também é de que as pessoas leiam o texto de Simon Schwartzman, pois é ali que os dados e argumentos estão detalhados, ele é a fonte do nosso ensaio. No geral, concordamos com o diagnóstico de Schwartzman, mas, de fato, suas soluções propostas nos parecem reducionistas, um tanto limitadas, e por isso devem ser colocadas em questão.
Sobre o ponto de que 100% dos mestres e doutores deveriam ser empregados no serviço público, creio que não ficou clara sua argumentação. Se politicamente mal conseguimos travar o andamento de uma reforma administrativa que visa reduzir o tamanho do Estado, como expandir tanto o funcionarismo público num contexto de capitalismo dependente? Estatizando toda a economia? Bom, aí viveríamos uma verdadeira revolução!
Outra dúvida que suas posições suscita mas não responde: de alguma maneira, as empresas privadas não poderiam ser obrigadas a investir em formação superior de seus funcionários, se tornando corresponsável ao menos pelos setores estratégicos da economia? Ora, parece justo dividir essa onerosidade com o Estado, já que o retorno contemplará também a própria iniciativa privada. Há riscos aí? Claro, mas a lógica é mais ou menos a mesma que você apontou: os desperdícios são inerentes ao sistema, não é possível eliminá-los totalmente. Inclusive, o risco é um dos pressupostos elementares da lógica liberal do empreendedorismo. No nível individual isso também se aplica, pois as pessoas de melhor condição socioeconômica poderiam sim arcar com os custos de sua qualificação profissional, deixando o Estado focar em quem pretende fazer pesquisa de excelência e de potencial impacto.
Longe de pretender trazer soluções fáceis e universais, o ensaio acima é a externalização de uma preocupação que tem se evidenciado nos últimos anos, isto é, que o ensino superior e a pesquisa de alta qualidade não estão caminhando no mesmo ritmo das condições estruturantes do desenvolvimento técnico e científico, como a economia e a educação básica. O Estado brasileiro expandiu fortemente as oportunidade de pós-graduação de uma maneira que quase beira o anárquico, sem um planejamento criterioso de longo prazo.