[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
A leitura de um livro é a possibilidade de um universo de conhecimento a partir da abertura de si. Mais do que abrir uma obra e folhear suas páginas, ato que por si mesmo já se constitui como um prazer imenso – a não ser quando o conselho de Deleuze é verdadeiro sobre a funcionalidade do livro, se ele serve ao desejo de criação transformadora, do contrário, cesse logo a leitura! –, o leitor lê a si mesmo no defronte com o trabalho do escritor. Ler é viver, e viver é transformar-se cada vez que se lê a si mesmo e à medida que se conhece e se reconhece. Jamais leia um livro como se fosse um manual para ser reproduzido sem sentimento consciente. A mecanização dos saberes é perigosa para a mente criativa da imaginação, portanto, a leitura deve considerar escritos que proponham a multiplicidade dos pensamentos em vez da idolatria das receitas teóricas e dos manuais técnicos.
Contudo, observamos apenas um lado da moeda da atividade que mais enobrece o ser humano. Não descartemos de maneira alguma o devir da leitura, isto é, a ação de formação transformadora do sujeito que se autorrenova cada vez que lê, mas essa é uma razão passiva. A prova disso está nos exemplos mais corriqueiros do cotidiano, desde a experiência de um estudante com a aula de seu professor até o aprendizado de um idioma muito distinto da língua materna do falante. Em ambos os casos, a leitura é o grau mais baixo de intelecção com que o indivíduo pode se apropriar autonomamente do assunto e, por esse motivo, a escrita apresenta-se como o seu extremo relacional, não contrário à leitura de modo antagônico, mas face de uma dualidade teórico-prática que engloba o processo de agenciamento do ser inconstante pelo ler e escrever de uma obra.
Nisso, leitura e escrita conversam entre si, brincam e jogam com o nosso entendimento e nos permitem crescer no mundo e, por isso, ambas são tão significativas no desenvolvimento infantil, mas não somente durante essa pequena parte da vida e para esse público tão miúdo em idade: ler e escrever são necessários até a velhice e o devir leitor-escritor igualmente imprescindível para os filósofos.
Ora, saber ler à beça não é a mesma coisa que saber escrever bem. Ambos se relacionam e interconectam, mas há uma diferença prática entre esses atos. A leitura é mais simples comparada à escrita. Ler é caminhar por um campo florido do interior e inspirar a brisa da mudança do tempo que vem com o estado de apreciação; escrever é escalar uma montanha rochosa de pedras instáveis tentando alcançar o topo do entendimento sem cair na incompreensão do leitor.
Alguns filósofos cujas citações poderiam muito bem explicitar tal caso, mas em que nada nos agregariam por agora, são exímios leitores da história da filosofia, porém pecam em externalizar aquilo que tão bem aprenderam e, em certas situações, parecem criar um idioma próprio. Já não é o caso para outros tão ilustres pela sua filosofia quanto pelo jeito que a retrataram através da escrita cuidadosa com as palavras e simpática com o leitor que não se sabe quem é – mas se comunica com esse estranho como se fosse um estimado conhecido. Nessa direção, poderíamos mencionar Bento Prado Jr., Henri Bergson, Marcel Proust e, principalmente, Michel de Montaigne.
Estes tinham a leitura da literatura e da filosofia como amigas inseparáveis, conversando com alguém sem vê-lo, mas conjuntando-se em uma espiral de movimento contínuo com os escritores das mais distintas épocas do passado e as mais envolventes histórias que algum dia já foram escritas. Prado Jr., por exemplo, tinha um estilo muito rebuscado com as palavras e o modo de escrever, estilo observável desde seus ensaios filosóficos até a tese de livre-docência Presença e campo transcendental (1988). Prado Jr. lia e entendia Bergson agradavelmente bem, filósofo que encantou tanto ele quanto Deleuze em Matéria e memória (1990), por suas belas metáforas que se aproximavam pela linguagem sobre aquilo que a espacialidade não se assemelha, ou seja, a temporalidade da duração. Também Proust, que não era filósofo, mas em seu Em busca do tempo perdido (2016), abrange certos tópicos há muito explorados pela filosofia, desde o tempo e a memória até a moral e a paixão, todos estes sob um estilo simbólico-gótico e semiautobiográfico que esbanja de alegorias para a história.
O caso mais célebre para este ensaio é Montaigne, que se isolou em sua torre para escrever sobre tudo o que lhe aprazia dizer. Os ensaios (2010) são os sintomas de sua doença que um dia o fariam deixar essa realidade. Em vez de sofrer com o sentimento da chegada inesperada de sua morte, Montaigne escrevia para si mesmo e para conservar sua imagem aos seus colegas e familiares após sua viagem ao divino. Ele foi filósofo e não pensador estoico, humanista ou cético – seria impreciso qualificá-lo em qualquer perspectiva filosófica –, ou, melhor dizendo, um escritor filósofo, uma categoria específica que vale não apenas por não encaixá-lo em uma doutrina, mas por permitir que se entenda, por meio dessa expressão, a magnitude da escrita para sua a vida, as suas obras e ideias. O devir é a mudança pelo processo de ação libertadora, em outras palavras, ao invés do ser como constituição imutável do real, é o devir – e, nesse ponto, o devir do escritor filósofo – que agencia a criação de potências das vivências do autor pela organização da escrita que não encerra em tempo algum o fluxo da transformação.
Esse caráter de autonomia e liberdade condizem com a personalidade e escrita de Montaigne. Ora, há gênero de escrita com mais liberdade do que o ensaio? O ensaio é o texto sem regras. Não há início e fim predeterminado. Montaigne escreve a respeito de um tema, passa para outro assunto, volta no anterior e faz isso em três ou cem páginas. Nisto se constitui a beleza como liberdade de escrita sem forma, vida sem preceitos reguladores e devir como mudança que está sempre em vias de se fazer.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. – 4ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
PRADO JR., Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Tradução Fernando Py. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2016.
[1] Realiza pós-doutorado na UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor, mestre e graduado em filosofia pela UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4169758387083771 E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo é o 12º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.