[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
A filosofia vem se manifestando e se desenvolvendo ao longo da história da humanidade, desde o século VI a. C. até os dias atuais, trazendo consigo grandes questionamentos que levam o homem a adquirir conhecimento e a descobrir mais sobre si mesmo, a vida, a razão, a mente humana e sobre diversos outros temas. O conhecimento filosófico oferece sempre uma visão mais ampla e crítica sobre tais assuntos porque através da dúvida e do questionamento, características clássicas da filosofia, surgem a pesquisa e o desenvolvimento de grandes teorias, inclusive as teorias científicas.
Grandes pensadores passaram pela filosofia durante seus mais de 2 mil anos, deixando importantes legados, desde os antigos com suas teorias sobre o princípio de tudo, a existência, a natureza, o conhecimento, a ética, entre outros temas, até chegar nos tempos atuais, com novas temáticas, problemas e conceitos complexos, ou seja, a filosofia é bastante ampla se levarmos em conta as várias e ricas heranças que ela produziu ao longo do tempo.
Um dos temas filosóficos contemporâneos muito interessantes é o tema da “Epistemologia Histórica”, este campo de análise que envolve a “História das Ciências” e a “Teoria do Conhecimento”, e do qual podemos extrair várias questões e problemas, por exemplo: quem pode ser considerado “o pai”, o precursor de uma teoria científica? Quais teorias devem ser levadas em consideração quando se trata da história de um conceito científico: as teorias mais antigas ou as mais atuais?
Para responder a esses questionamentos, devemos primeiramente nos perguntar: o que é um precursor? Do ponto de vista mais básico, de acordo com o dicionário, precursor é aquele que prenuncia, anuncia, prepara ou inicia algo (no caso da nossa análise, alguma tese, teoria ou conceito), a partir do que outros cientistas das mais diversas áreas podem compartilhar seu conhecimento a respeito da tese iniciada, contribuindo para seu desenvolvimento.
Esse é o caso, por exemplo, do conceito de “reflexo”. Georges Canguilhem (1904-1995), em seu livro A formação do conceito de reflexo nos séculos XVII e XVIII (1977/2022), analisa a questão epistemológica de saber quem pode ser o pai, ou mais precisamente, precursor do conceito de reflexo. Para Canguilhem, René Descartes (1596-1650) é quem introduz esse conceito a partir de sua análise dos movimentos involuntários, mas, antes de considerá-lo como o precursor de tal conceito, ele analisa e questiona se Descartes merece realmente essa posição, tendo em vista que este é um matemático e filósofo, enquanto o conceito de reflexo está presente em estudos médicos e biológicos.
Ao citar Thomas Willis (1621-1675), que tematiza diretamente a noção de “reflexo”, Canguilhem entende que seus estudos não têm efeito significativo se comparado a Descartes, salientando que “em matéria de história da ciências, o primeiro dever é o de reconhecer como pai aquele que realmente o é, mesmo que outro seja considerado mais digno de tê-lo sido” (CANGUILHEM, 2022, p. 109). Assim, fica claro que Descartes, além de merecer seu lugar de destaque na série da formação do conceito de reflexo, pode ser tomado como sendo o seu precursor.
Todavia, apesar de Descartes ser o “pai do conceito de reflexo”, outros pensadores já escreveram sobre o tema antes do filósofo, porém, com outros termos e outras finalidades. É o caso, por exemplo, de Aristóteles, analisado por Canguilhem (2022, p. 33) no primeiro capítulo do seu livro. Embora tenha estudado o movimento dos animais, Aristóteles (384-322 a. C.), ao examinar como a alma e o desejo do animal movem seu corpo, destacando o coração como sede absoluta do movimento, nunca usou o termo “músculo” ou “reflexo” em seus trabalhos sobre o tema. O mesmo caso, segundo Canguilhem (2022, p. 35-38), ocorre com Galeno (130–200 d. C.), que chegou a debater sobre a quantidade numerosa dos músculos e o movimento de cada um deles, mas jamais utilizou o termo “reflexo”.
Almeida (2016), em seu artigo “História da medicina e das ideias de Sigerist a Canguilhem”, defende que a intenção de Canguilhem é restituir uma dignidade ao “pré-científico”, postulando uma continuidade entre objetos de estudo e suas primeiras formulações sobre ele, ou seja, Canguilhem considera o surgimento da pesquisa, o que veio antes, desde um breve comentário até “mitos” anteriores às formulações científicas do assunto tratado. Por exemplo, “se Kepler e Galileu expulsaram o antropocentrismo da teoria do movimentos dos astros, este antropocentrismo subsiste na teoria do movimento do homem” (CANGUILHEM, 2022, p. 186.), isto é, mesmo as teorias mais antigas de um objeto de estudo, por mais que sejam “mitos”, são tão relevantes quanto as mais recentes, pois fazem parte da história daquele tema. A ideia central aqui é a de que o ser humano e seus métodos evoluíram com o tempo, tal como afirma Almeida (2016), e isso significa que o que se passa antes do famoso começo histórico de uma teoria é tão importante quanto o que se passa depois.
Sobre esse assunto também é interessante considerar Thomas Kuhn (1922-1996). Condé (2023), no artigo “A herança de Thomas Kuhn para a história da filosofia da ciência”, afirma que o filósofo compreende a história não como mera cronologia ou um passar de tempos e datas, mas como um espaço de historicidade, ou seja, conforme os cientistas vão vivendo e produzindo seus trabalhos em um determinado espaço-tempo, o resultado final de seus trabalhos acaba por se tornar objetos marcantes para seu tempo. Ao contrário de Canguilhem e Ludwik Fleck (1896-1961), que, no que se refere à história das ciências, trouxeram uma visão mais evolucionista, Kuhn defende a chamada “revolução científica”, isto é, que uma teoria científica (em termos kuhnianos, um “paradigma)” que não resiste ao problema da justificação, como propôs Karl Popper, não deveria ser derrubada, mas sim aprimorada e modificada em seus pontos teóricos para que se aproximasse ainda mais da verdade.
Apesar de concordarem que uma teoria científica talvez pode não levar a uma verdade absoluta sobre determinado tema, Kuhn e Popper travaram um debate clássico a respeito das formulações das teorias científicas. Nesse debate, Popper defende a ideia da falsificação, isto é, quanto mais uma teoria resiste às falsificações, apesar de talvez não ser absolutamente verdadeira, mais confiável ela se torna, e na medida em que as teorias que são derrubadas pela falsificação deixam de ser essenciais. Kuhn, por sua vez, critica Popper ao defender que toda teoria científica tem sua importância, mesmo depois de derrubada ou não utilizada, tendo em vista que ele concorda com a alteração dos pontos teóricos, fazendo jus a sua chamada “revolução científica”, cuja finalidade é defender e ressaltar a história de uma teoria científica, assim como Canguilhem e Fleck ressaltaram a importância do “pré-científico”, ou seja, quando se trata de saber sobre a criação de um conceito ou teoria científica, é importante considerar todo o conjunto teórico que os envolve, desde as concepções ou teorizações mais antigas até as atuais.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
CANGUILHEM, Georges. A formação do conceito de reflexo nos séculos XVII e XVIII. Tradução de Caio Augusto Teixeira Souto. São Paulo: Córrego, 2022.
ALMEIDA, Tiago dos Santos. História da medicina e das idéias de Sigerist a Canguilhem. Intelligere, Revista de História Intelectual, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 68-83, 2016.
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. A herança de Thomas Kuhn para a história e a filosofia da ciência. Problemata, Revista Internacional de Filosofia, v. 14. n. 4, p. 15-26, 2023.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o 13º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.