Amores, ódios, fascínios, críticas, temores, admirações. Fidel Castro, em quase seis décadas de protagonismo global, sempre despertou toda sorte de sentimentos, menos um: a indiferença. Desta ele jamais padeceu. E isso se deve a um fato que o comandante supremo da Revolução Cubana irá levar para o túmulo. O homem que acaba de morrer aos 90 anos passou dois terços de sua vida no poder, desafiando a maior potência global no quintal do império que atacava, sendo uma referência (para o bem ou para o mal) nos mais diversos espaços, da Assembleia Geral da ONU à conversa no boteco da esquina. Figura conhecida mundialmente, integra um certo imaginário que atravessou gerações e desenhos geopolíticos planetários.
Adorando ou detestando o líder de esquerda mais influente desde Lênin e Stálin, é preciso reconhecer as proezas de Fidel Castro. Uma premiada série da TV americana que mostrava os bastidores da Casa Branca dá bem essa dimensão. Em um dos episódios da penúltima temporada de The West Wing, escrita pelo oscarizado roteirista Aaron Sorkin, o personagem do presidente norte-americano, interpretado pelo ator Martin Sheen, convoca seu ex-secretário de Estado para uma missão secreta. Ele deve ir a Cuba abrir um canal de diálogo com Fidel Castro. A informação vaza para a imprensa e ele precisa se explicar sua decisão ao público norte-americano, que não gosta da novidade. Antes de seu pronunciamento, o presidente lamenta que haja tanta resistência a este contato e solta uma frase lapidar. “Pelo amor de Deus, será que não percebem que Fidel Castro ganhou?”
Se Cuba ganhou com Fidel Castro, cabe uma longa discussão. O que ninguém discute é que Fidel foi o mais resiliente líder político do século 20. Conseguiu se segurar no poder mesmo depois de várias tentativas de assassinato por parte da CIA, que foram de charutos envenenados a bombas em seus sapatos; repeliu tentativas de golpes e invasões, como a fracassada incursão na Baía dos Porcos, em que soube dos planos de dissidentes e tropas americanas e os esperou na praia para responder ao ataque que deveria ser surpresa; suportou um embargo econômico que impediu a ilha de crescer e a isolou de boa parte do mundo; não caiu juntamente com a União Soviética, potência comunista que sustentou Cuba por cerca de 30 anos.
Nos início dos anos 1960, Fidel Castro esteve no centro do embate entre EUA e União Soviética que quase implodiu o mundo em uma guerra nuclear. A chamada Crise dos Mísseis, dez dias tensos em que Casa Branca e Kremlin mediram forças por conta de armas instaladas em Cuba e que quase provocaram a Terceira Guerra Mundial, mostrou que aquele advogado de esquerda, dono de uma oratória sedutora, de porte físico garboso e de barbas (naquele tempo) negras era mais que um maluco que havia impetrado um golpe de Estado improvável sobre um governo corrupto e sanguinário como era o do ditador Fulgêncio Batista, apeado com a Revolução Cubana de 1959.
Fidel Castro mantinha a receita dos déspotas, unindo charme ideológico com uma violência atroz contra seus oponentes. Os primeiros anos da Revolução em Cuba foram marcados por execuções, perseguições, prisões sem direito à defesa, exílios. Fidel e outros líderes daquele movimento, como o médico e guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara, abismaram o mundo pela maneira como conquistaram um país para suas causas e pela forma pela qual passaram a manter essa supremacia. Fato é que Fidel colocou uma ilha caribenha no mapa global do poder, exportando ideias e tropas para combates em prol de revoluções pelo mundo.
Che Guevara morreria 8 anos depois na Bolívia fazendo exatamente isso – e, dizem as más línguas, abandonado por um Fidel Castro, que teria achado cômodo se livrar de um fortíssimo concorrente ao posto de líder simbólico maior desses movimentos. Quando Angola se envolveu em uma guerra civil advinda de ódios despertados com sua turbulenta independência de Portugal, Fidel Castro também enviou tropas para ajudar os “companheiros” socialistas que se envolveram nos conflitos. Na reconstrução da África do Sul pó-apartheid, Nelson Mandela teve em Fidel Castro um aliado que tantos poderiam considerar improvável, mas que foi eficiente em certos níveis práticos.
Os que gostam e os que odeiam Fidel Castro costumam desqualificar os argumentos contrários à imagem que defendem do ditador. Melhor seria reconhecer que o líder cubano foi, ao mesmo tempo, um inimigo da democracia e um presidente amado por boa parcela da população cubana. Fidel perseguiu implacavelmente quem dele divergia. Escritores como Cabrera Infante e Reinaldo Arenas, que estão entre os melhores que a América Latina produziu no século 20, tiveram suas vidas arrasadas pelo castrismo. Prisões políticas ficaram lotadas, a liberdade de expressão desapareceu, igrejas cristãs foram proibidas e o país mergulhou em uma miséria aterradora.
Por outro lado, não reconhecer méritos do regime de Castro é pecar por uma análise imprecisa. Cuba, com todos os problemas e limitações econômicas que enfrenta, é referência mundial em Medicina, desenvolvendo tratamentos eficazes contra doenças como vitiligo e vários tipos de câncer. Também é o país com a menor taxa de mortalidade infantil das Américas. Essa taxa é menor, por exemplo, que as de Canadá e EUA. Nessa área, a ilha exporta modelos, como o da Saúde da Família, implantado no Brasil nos anos 1990. O analfabetismo em Cuba também é baixíssimo e simplesmente não existe entre gerações mais jovens.
Outro predicado inegável de Fidel Castro era sua capacidade de se moldar aos contextos. Talvez por isso jamais tenha sido derrubado, a não ser pela doença que o acometia há cerca de 10 anos. Quando a União Soviética ruiu, ele soube se recolocar no tabuleiro político, estreitando laços com a Europa e abrindo um sólido canal com o Vaticano. Os últimos três papas foram a Cuba, a Igreja Católica voltou a atuar na ilha e o atual pontífice, Francisco, intermediou a reaproximação entre o regime castrista e os EUA. Fidel, aliás, morre no ano em que um presidente norte-americano, Barack Obama, retoma as relações diplomáticas entre os dois países e visita Havana, algo que não acontecia desde os anos 1950.
A esquerda latino-americana perde seu maior símbolo e isso a enfraquece ainda mais, já tão combalida que está por derrotas sucessivas, escândalos de corrupção e incompetência para gerir a economia. Mas Fidel Castro era mais que isso. Ele guardava um perfil enigmático. Era um ditador sim, mas ainda muito popular. Havia muita gente em Cuba que o odiava, mas também não eram poucos os que o amavam. Se assim não fosse, não se manteria no poder apenas pela força, ainda mais com tantos agentes externas poderosos querendo suprimi-lo.
Estive em Havana alguns anos atrás e é claro que muitas pessoas, quando perguntadas sobre Fidel Castro, se calavam, sorriam desconfiadas, claramente com medo de expressar uma opinião menos favorável a ele. Outras, porém, gostavam dele genuinamente. Gente que, bem ou mal, tinha comida na mesa, um teto para se abrigar. Pode parecer pouco para tantos, mas isso pode ser tudo para muitos. Diversas denúncias deram conta que Fidel Castro enriquecera enquanto os cubanos tinham que se virar para sobreviver. Pode ser, mas é preciso dizer também que os cubanos têm escola e saúde, que não há surtos de violência na ilha, utopias para países como o Brasil.
Fidel foi ,assim, um homem complexo, cheio de prós e contras. Talvez exatamente por isso tenha sido o autor de tantas proezas em sua trajetória de nove décadas. Enquanto esteve no poder, passaram pela Casa Branca 11 presidentes. Oito deles, pelo menos, tentaram derrubá-lo das mais diversas maneiras. Desde janeiro de 1959, quando Fidel entrou apoteoticamente em Havana, ele seduziu intelectuais, como Jean-Paul Sartre, Ernest Hemingway e Gabriel García Márquez, e despertou aversão em outros, como Mario Vargas Llosa. Viu governos ascenderem e cair à sua volta, testemunhou o mundo se redesenhar, mas sempre de esquadro na mão.
Texto primoroso. Parabéns.
Belo e romanceado texto sobre um ditador que fez muitos sofrerem calados.
Belo e isento texto!
Conheço Cuba, como militante de esquerda, mas sobretudo como profissional em Criminalística, como perito criminal, e depois como estudante e jornalista formado pela UFG.
Nas décadas de 80/90 acompanhei as políticas públicas da ilha bem de perto. Participei de importantes momentos na América Latina sob influência das lutas do povo cubano. Presidente da Associação Cultural ” Jose Martí” Brasil-Cuba de Goiás, esmeramos por conquistar a retomada das relações diplomáticas entre Brasil-Cuba ainda na década de 80. Colhemos café nas fazendas públicas da Nicarágua e nos alistamos na FRELIMO pra defender a Revolução de Moçambique na longínqua África. Tudo sob influência da ilha rebelde, referência de toda uma engajada geração libertária não-alinhada.
O Brasil? Estava no processo de redemocratização, muito pouco pra nossa utopia de liberdade e justiça social.
Já estive em Cuba por seis vezes, passeando ou dando aulas. Um dos importantes retornos foi para acompanhar o sepultamento de Che e companheiros, em 1997, na cidade de Santa Clara, a convite de colegas legistas cubanos. Um dos dois peritos oficiais brasileiros convidados oficialmente para tamanha honra.
Retornei pela última vez em 2008 para conhecer o novo sistema organizacional de perícia criminal adotado na ilha, o mesmo que me levaria para a República Tcheca em 2009 para discutir sua aplicabilidade (aliás, outra pauta maravilhosa nossa).
Grandes passagens da minha vida, essa incrível ilha!
Nesta semana, um mês depois da morte de Fidel Castro, estarei novamente na ilha.
Vou fazer o mesmo de sempre. Andar na ilha, conversar com as pessoas, com as autoridades, jornalistas, artistas, peritos, coletores de lixo, professores, médicos e as mulheres de Cuba – sempre muito críticas e rebeldes!
Entrar nas casas das pessoas, nos centros de atendimento a saúde, escolas, universidades… enfim, experimentar um país muito diferente de tudo na América Latina cheia de problemas, como sabemos!
Agora vou por Ermira, este site de grandes debates, mais atento, a construir minhas impressões pessoais sobre a Cuba sem Fidel. Vou cheio de motivos passionais por conta deste novo momento. Mas, como sempre, desprovido de argumentos que sempre alimentaram arrasadores e inúteis preconceitos.
Vamos então. Até!