Em tempos de bolhas na internet, em que todos gritam e ninguém se entende, ver A Forma da Água, novo filme do diretor mexicano Guillermo del Toro, é um bálsamo e um tapa na cara ao mesmo tempo. Obra alegórica como tantas outras da lavra deste inspirado cineasta – vide o formidável O Labirinto do Fauno –, ela pode ser apreciada em circuito comercial em Goiânia e é uma das principais atrações da programação da 11ª edição da mostra O Amor, A Morte e As Paixões, em cartaz no Shopping Bougainville até 21 de fevereiro. E vale muito a pena conferir o trabalho, não só por ele ser o recordista de indicações ao Oscar deste ano, mas sobretudo porque ele nos faz refletir.
Um enredo que poderia parecer vergonhosamente inverossímil e cheio de furos (afinal, alguns deles são inevitáveis nesse tipo de ousadia) torna-se, suavemente, um convite ao entendimento e ao amor ao diferente. Em um laboratório de pesquisas secreto do governo norte-americano, a captura de uma criatura mítica na Amazônia é mais um capítulo em um jogo de espionagem tão comum nos anos de Guerra Fria. Um funcionário ambicioso quer fazer do achado desse monstro aquático que se parece um hominídeo, mas que vive submerso em água salobra, o impulso à sua carreira. A questão é que esse homem apresenta um sadismo indisfarçável e especialmente cruel.
A esperança desse ser híbrido entre homem e peixe é uma funcionária da limpeza do lugar, que vê sua chegada e acaba criando uma relação profunda com a criatura mantida em cativeiro em um tanque. Essa mulher, vivida magistralmente pela excelente atriz Sally Hawkins (a irmã problemática de Cate Blanchett no filme Blue Jasmine, de Woody Allen), tem algo que a aproxima desse ser mágico. Ela é muda, mas sua comunicação com o mundo é perfeita, desde que as pessoas saibam se conectar ao seu espírito livre e autônomo. Isso ocorre, por exemplo, com sua colega de trabalho, interpretada pela ótima Octavia Spencer, e por seu vizinho, um pintor gay solitário e fã de antigos musicais (até Carmem Miranda aparece), defendido lindamente pelo veterano Richard Jenkins.
De maneira muito lúdica, essa relação entre a criatura e a mulher que tenta salvá-la aprofunda-se com delicadeza e compreensão mútuas. E uma outra linguagem se estabelece entre eles, que prescinde de palavras e se baseia em um afeto que chega a uma comunhão de corpos mostrada com imensa felicidade pelo diretor, em uma cena repleta de metáforas e simbolismo. Um verdadeiro show de beleza e intensidade que Guillermo del Toro vai preparando desde a primeira tomada do filme. A Forma da Água não se perde um minuto sequer, não apresenta nada gratuito e pavimenta sua história com calma e destreza. Tudo amparado por performances irretocáveis de todo o elenco.
A Forma da Água é um elogio à linguagem possível, ao entendimento entre os seres, à aceitação das discrepâncias, ao olhar carinhoso que somos capazes de lançar sobre quem nos está próximo. Não se trata apenas de um exercício de tolerância, mas sobretudo de coragem. Um ato de libertar-se de nossos preconceitos, de nossos formatos pré-estabelecidos, de nossos julgamentos apressados. Mais que falar, é o agir, é o comprometer-se com uma possibilidade que não deve nos escapar. Naquele elemento aquoso, a “princesa sem palavras” mergulha profundamente, sem medos ou reservas. Ao lado dela, tantos outros assistem a essa atitude com admiração e com vontade de fazer o mesmo, deixando para trás seus receios. O exemplo está dado, para eles e para nós.
Filme: A Forma da Água
Diretor: Guillermo del Toro
Elenco: Sally Hawkins, Ocatvia Spencer, Richard Jenkins, Michael Shannon