Judite, aquela que matou Holofernes, é uma imagem que se me irrompe de quando em quando. As histórias em desconexão precisam ser recontadas, a minha e a dela, para que esse anacronismo faça sentido.
Vivi uma formação religiosa católica em colégio de freiras. Era obrigada a assistir aulas de ensino religioso que me aterrorizavam com suas narrativas gratuitamente perversas. Onde já se viu um deus castigar de miséria e sofrimento seu mais fiel seguidor apenas para ganhar uma aposta com o diabo? (que, no fim das contas, é o filho querido desse próprio eloim?!) E o que dizer do irmão vendido a estrangeiros por ciúme ou diversão?
Para não morrer de medo de tudo e de todos, tive que deixar de acreditar. Não, não há resquício de pensamento político nas origens do meu ateísmo. Foi questão de sobrevivência moral mesmo.
Desse repertório épico de silêncios violentos, metafísicos, sempre o gesto final de Judite – a decapitação, e um voltar para casa singular: carregando uma cabeça cortada. Provavelmente esse texto foi escrito no século II a. C., a autoria é desconhecida, e demorou muito para entrar no cânone cristão, não chegando nunca a ter sido aceito pela Bíblia protestante.
O livro de Judite abarca uma narrativa completa e única. Trata-se mesmo de um conto em sentido literário; algo muito diferente, mais elaborado composicionalmente, do que os enredos fragmentados que se acumulam no Antigo Testamento. Apesar de sua pretensão documental, mistura com liberdade elementos da história e da geografia, ou seja, há um teor identificável de ficção. O narrador situa seu relato no tempo de Nabucodonosor, que teria sido rei entre os assírios em Nínive. Mas Nabucodonosor reinou na Babilônia em um momento em que Nínive já havia sido destruída. Além disso, a cidade de Betúlia, onde se desenrola a ação, nunca pôde ser identificada no mapa.
A história é simples: viúva, piedosa, bela e esperta, Judite vê sua cidade, Betúlia, ser sitiada pelo comandante Holofernes, que realizava os planos de conquista do rei babilônico. Ao ver seu povo padecendo de fome e de sede pelo estado de sítio, prestes a se render, Judite convoca os chefes e anciãos da cidade para avisar que vai resolver o problema em nome de Deus e para o bem do povo judeu. Depois das orações e do jejum, dos óleos e incensos, faz-se apresentar no acampamento inimigo com a exigência de falar diretamente ao comandante.
Astuta como a Penélope da Odisseia e guerreira como a Camila da Eneida, diz: “Deus enviou-me para realizar contigo coisas com as quais toda a terra se assombrará, quando as ouvir”. Ambiguidade é o que não falta ao corpo-língua dessa heroína. E o pobre coitado do militar se inflama de desejo por suas palavras. Num banquete em que Holofernes está decidido a tomar Judite para si, ela o embriaga e o degola, separando a cabeça do corpo. A cabeça cortada foi carregada num embornal até Betúlia, onde viveram felizes para sempre.
A imagem de Judite, uma mulher descrita como nobre e delicada, decepando o pescoço do imenso Holofernes, é a imagem que sempre me atormentou. Imagine a força física necessária para tal empresa! Segurar o corpo ou apoiar-se no corpo embriagado? O texto bíblico menciona apenas dois golpes, mas isso a gente põe na conta da economia ficcional. Quantas incisões? Quanto sangue até a última fibra se romper?
Ainda menina, tentando entender o recado da igreja, pensava comigo que nunca seria capaz de cortar nem mesmo a cabeça de um gato para salvar “meu povo”, quanto mais de uma pessoa. Num primeiro ponto de inflexão de minha formação, eu passei a gostar mais da história dessa mulher-maravilha, mas aí já me incomodava com o sentido religioso – “a eterna luta do povo de deus contra seus inimigos” – difícil de ser reinventado.
Abandonei a história por um tempo, até conhecer os quadros de Caravaggio, Artemísia, Mantegna, Botticelli, Tintoretto, Cranach, Rubens, Hemessen; então já podia me descansar do conteúdo e me distrair com as formas e expressões de cada judite multiplicada em cores e tecidos e cabelos e espadas diferentes.
Apenas muito recentemente, conheci uma ressignificação da história de Judite que atende àquele antigo anseio de laicização. Uma pesquisa realizada pela professora Liza Piña, da Universidade Católica do Chile, na tentativa de entender a origem da tela de Botticelli conhecida como Retorno de Judite a Betúlia (1470-1472), pergunta-se sobre quem teria encomendado a peça.
Lucrezia Tornabuoni (1427-1482), viúva muito jovem, teve que assumir a direção da família; com poder de negociação e gosto pela diplomacia, transformou-se em uma matriarca definidora do destino dos Médici e de Florença, vindo a ser a mãe do magnífico Lorenzo – esta é a aposta da pesquisadora. A encomenda de uma representação de Judite a Botticelli teria a finalidade de educar os frequentadores de seus salões: saibam que tipo de mulher está à frente dessa família sem pai.
E assim, com Lucrezia, Judite deixa de ser um mero instrumento da vontade divina para se tornar um corpo com energia e desejos próprios. Só assim alcancei a graça de me encontrar contemporânea de Judite.
#EleNemPensar
Parabéns pelo texto.
O mundo deveria respeitar mais as famílias criadas sem o despotismo masculino, porque isso é independência. Eu cada vez acredito mais que só há sincronismo. Parabéns pelo texto e obrigada pela reflexão.