Depois do obscurantismo medieval e do direito divino dos reis, acreditei termos superado a complicada relação entre a ação política e os desígnios da moral cristã. Minha presunção encontra confiança a partir das teorias políticas de Nicolau Maquiavel (1469-1527) que, mesmo após transcorridos mais de 500 anos, continua a impulsionar os interesses republicanos em diversos países, sem deixar de acrescentar a herança da secularização do pensamento e, sobretudo, o alcance maior da ciência e da razão nos dias atuais. Contudo, apesar de a Constituição Brasileira (1988), numa certa medida, utilizar desses princípios, a despeito disso, algo me parece ter dado errado.
Recentemente ouvi dizer, partindo de um apoiador do atual presidente Jair Messias Bolsonaro, que mesmo ele não sendo um deus, “seguramente” seria “o escolhido”. De forma surpreendente essa declaração encontra eco nas diferentes alas ideológicas, cujo perigo semelhante a um coquetel à base de absinto e cerveja barata, envolve adeptos do falso evangelismo somado à elite escravagista e aos frequentadores dos clubes de tiro. Bizarramente há quem defenda o contorcionismo exegético de tentar justificar tamanha insensatez, tanto é que, segundo a inquirição desses apoiadores, a personagem bíblica do rei Davi, apesar da pecaminosa paixão por Betsabá, nunca o impediu de vir a ser um notável e abençoado governante; então, decerto, sequer haveria motivos razoáveis de impedir o chefe da nação tupiniquim de seguir os mesmos rumos do histórico líder dos hebreus.
Formidavelmente, Maquiavel, em O Príncipe, destaca a disparidade do catolicismo medieval com a verdadeira condição humana. Somente assim, foi possível elaborar um pensamento alinhado à realidade, dispensando os interesses utópicos comumente utilizados nos discursos populistas. Desse modo, o filósofo florentino desencadeia o gradativo distanciamento da visão idealizada da política, centrando suas reflexões na espera por um estilo de governança disposto a equilibrar os conflitos e as tensões manifestas nos grupos sociais da antiga renascença italiana, ainda servindo de parâmetro até hoje.
Independentemente de todo o brilhantismo, reconheço o incômodo, pois é preciso aceitar o problema da incompatibilidade do pensamento maquiaveliano com nosso país, onde a democracia dá sinais de extrema agonia. Afinal, as teorias de Maquiavel não seriam extemporâneas o bastante ou sua filosofia, embora tão pragmática, subestimara as chances reais de as pessoas viverem num mundo distópico? Quando falamos da politicagem brasileira, o “Jesus” particular de certos “cidadãos de bem” é transformado no excêntrico cabo eleitoral, devido à facilidade de sua modelagem satisfazer às expectativas ambiciosas de um projeto eleitoreiro notoriamente igualado à corrupção. As mensagens de paz, amor e esperança cedem lugar aos orçamentos secretos ou à propina em barras de ouro, amparadas pelo delírio da ambição e do fanatismo.
Compartilho agora a curiosa história de Maria de Nazaré, moradora do Distrito Federal. Após anos congregando numa seita evangélica, resolveu afastar-se de lá pelo motivo de o seu pastor substituir os sermões, outrora pautados nos Evangelhos, pelas pregações negacionistas, repletas evidentemente de mentiras e contradições. Decepcionada e disposta a desbravar novos horizontes, procurou outra igreja que, similar à primeira, repetia as mesmas declarações odiosas e de apoio irrestrito àquilo próximo do já ouvido nos discursos do Terceiro Reich, obrigando-a a prosseguir sua exaustiva jornada em busca de algum lugar transcendente e acolhedor.
A saga de Maria de Nazaré soa comicamente, mas na verdade apresenta contornos de dramaticidade. É, sem a menor dúvida, doloroso ver o desencanto tomar conta do espírito e, por conseguinte, deixá-lo entregue à tristeza e ao ceticismo. Freud, em seu Totem e Tabu, ou Émile Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa, deram boas explicações sobre a importância das religiões, sendo, portanto, a base essencial de qualquer organização social. No entanto, a laicização do pensamento, além de salvaguardar os interesses da vida pública, também preserva os religiosos, separando o modus operandi da política do modus vivendi da moralidade cristã.
Ora, distanciar a política das religiões jamais significou autorizar qualquer político à imoralidade, mas tão somente a recorrer a outras formas elementares de preparo civilizacional, infelizmente impróprias às intenções daqueles que insistem na rejeição à verdadeira remissão dos pecados em preferência ao poder e às falsas virtudes.