“Oh pátria amada
Idolatrada
Salve! Salve!”
Hino Nacional Brasileiro
Neste momento de comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil, quando diversos setores da sociedade apresentam os mais diferentes argumentos e questionamentos sobre os atos, agentes e narrativas elaboradas ao longo de dois séculos, e quando o circuito artístico inaugura exposições tendo por mote o papel da arte na reflexão, na revisão e na reescritura da história, trago a contribuição da produção artística contemporânea realizada em Goiás, pondo em evidência o trabalho da série Paisagens destiladas – Salve, salve! (2004/2006), de autoria do coletivo Grupo EmpreZa.
Baseado em Goiânia há duas décadas, o grupo é responsável por criar um corpo de obras em performance, com aplicações em fotografia e em vídeo, dos mais significativos da produção brasileira. É conhecido pelas situações extremas em que coloca o corpo, submetendo-o a processos longos e extenuantes, nos limites da dor, do risco e da violência, em obras que comentam de maneira impactante as práticas e os pactos sociais, os acordos entre corpos no mesmo espaço.
Mas o trabalho que aqui discuto não tem necessariamente a ver com a fisicalidade do corpo, e sim com a construção e a desconstrução dos símbolos de poder impostos sobre a sociedade. Trata-se de uma obra feita de cruzamentos entre questões que advêm da história, da memória e até da indústria cultural, que funciona como crítica à categoria dos monumentos e à celebração oficial, como registro do momento de amizade comemorado com bebida alcoólica, elaborando uma alegoria da passagem do heroísmo à embriaguez direcionada à efeméride da Independência do Brasil.
Constituída por três performances orientadas para vídeo, a obra Paisagens destiladas – Salve, salve! (2004-2006) é exibida por meio de uma videoinstalação montada com três projeções simultâneas dentro de uma sala fechada. Trata-se de performance na qual não se podem ver os corpos dos artistas, no máximo se escutam suas vozes diluídas no meio da balbúrdia de muitos outros sons, e que discute entre outras coisas a invisibilidade de quem toma pinga, ato praticado pelos artistas durante a gravação do trabalho para destilar e embebedar a paisagem.
A ironia está presente nas palavras “Salve, salve!” usadas no título da obra, que foram extraídas da letra do Hino Nacional Brasileiro, em que se repetem duas vezes, e que, no trabalho do Grupo EmpreZa, tiveram o sentido original de saudação e exaltação patriótica revertido para o pedido de salvamento de um País posto em risco.
O primeiro vídeo, intitulado Salve, salve! 7 de setembro, é projetado à esquerda da sala e nele veem-se imagens da parada militar realizada na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em comemoração ao dia da Independência do Brasil, em 2006. Posicionada ao lado do palanque de autoridades, a câmera tem enquadramento fechado na garrafa, contendo cachaça misturada com anilina cor de rosa, através da qual documenta a massa de populares que se aglomera para assistir ao desfile, enquanto a locução oficial narra a marcha de pelotões e a passagem dos agrupamentos das Forças Armadas Brasileiras, em terra e no ar, feitas como demonstrações do poder do Estado (paradas militares são inclusive bastante exploradas por governos autoritários), como representações de instituições que se pretendem garantias da “ordem” mencionada na bandeira.
Projetado na parede central da sala está o segundo vídeo do tríptico intitulado Salve, salve! Ipiranga, gravado ao lado do Monumento à Independência do Brasil, grande marco edificado pelo governo paulista para destacar a participação de São Paulo no processo de conquista da emancipação política nacional, e erguido no local onde Dom Pedro I teria proclamado a independência, às margens do riacho Ipiranga, na cidade de São Paulo. Concebido por dois artistas italianos especializados na categoria monumental, o arquiteto Manfredo Manfredi (1889-1927) e o escultor Ettore Ximenes (1855-1926), reconhecido internacionalmente, o monumento foi inaugurado inconcluso durante os festejos do primeiro Centenário da Independência, realizados em 1922. É um complexo muito grande no qual está localizada a cripta com o corpo do Imperador Pedro I, lá depositado pela ditadura militar durante as comemorações dos 150 anos da Proclamação da Independência, em 1972.
De linha neoclássica, a arquitetura em granito suporta, sustenta e eleva grandes grupos escultóricos fundidos em bronze: estátuas retratando personalidades associadas ao desejo de liberdade do país: José Bonifácio, Hipólito José da Costa e Diogo Antônio Feijó; representações de acontecimentos históricos de insurreições contra o domínio português, como a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana de 1817; engastado na base do monumento está o alto-relevo em bronze reproduzindo a pintura histórica O grito do Ipiranga (1888), a mais famosa representação da Independência, de autoria do pintor paraibano Pedro Américo (1843-1905), encomendada para a sala do Museu do Ipiranga, hoje Museu Paulista (onde está exposta), edifício construído, também, no terreno do Parque da Independência. No topo do monumento reina a alegoria Marcha Triunfal da Nação Brasileira, um complexo grupo escultórico de caráter épico e triunfal, que se eleva com grandiosidade e pompa agregando figuras humanas em torno da escultura equestre, cujo personagem central sustenta uma bandeira, que, no entanto, não flamula. É a alegoria que é focalizada no vídeo do Grupo EmpreZa, enquanto o áudio aberto captura a conversa banal entre os membros e o ruído intenso e sujo do tráfego que corre sobre o viaduto.
Por fim, Salve, salve! Independência ou morte é o título do último vídeo projetado à direita, que foi captado diante de uma tela de televisão enquanto os membros do EmpreZa assistiam, repetidas vezes, a partes do filme Independência ou morte (1972), do diretor Carlos Coimbra (1927–2007), lançado no auge do período de chumbo do governo do general Garrastazu Médici (1969-1974). Bem ao gosto da ditadura militar, o filme obteve grande sucesso de público por trabalhar com o sentimento de patriotismo ufanista, reunindo elenco estelar de agrado popular como Tarcísio Meira, no papel de Dom Pedro I, e Glória Meneses, no papel de Domitila de Castro, par romântico da televisão que conferia o tom romanesco dado à história. O fragmento escolhido pelo Grupo EmpreZa parte da cena em que José Bonifácio diz enfaticamente à princesa Leopoldina: “É chegada a hora de cortar os laços que nos une a Portugal”, e segue para a cena do encontro, entre Dom Pedro e o mensageiro enviado pela princesa, culminando no ato da Proclamação da Independência feito junto ao riacho Ipiranga com o clássico “heroico brado retumbante”: “Independência ou morte!”.
A cena dialoga com a História da Arte no Brasil reproduzindo fielmente a representação ficcional concebida por Pedro Américo na pintura O grito do Ipiranga, com as presenças da guarda militar trajada com o uniforme de gala que inspirou a farda dos Dragões da Independência do Exército Brasileiro, dos civis ladeando o príncipe a indicar a participação das classes sociais mais abastadas no processo de conquista da autonomia, da figura passiva do homem do povo posto quase à margem da cena, a conduzir um carro de bois indiferente aos acontecimentos políticos do país. Eis a imagem consagrada pela historiografia oficial em livros de arte, livros didáticos e enciclopédias, e reproduzida tanto no monumento quanto no filme. Nos três vídeos que integram a composição da obra são encontrados símbolos, cenas e personagens que se repetem na elaboração das narrativas da independência e na construção da imagem de poder do Estado Nacional.
A ação performática que estrutura a obra é muito simples e consiste em reuniões dos membros do Grupo EmpreZa para beberem uma garrafa de cachaça diante das determinadas paisagens ou situações: a parada de 7 de setembro, o Monumento à Independência, o filme Independência ou morte. Beber juntos pode significar uma festa, mas não é só disso que se trata, pois existe uma intenção política nesse ato banal e há um alinhavo inteligente que liga os lugares e cenas selecionadas para compor a obra. As imagens do tríptico mostram o destilar dessas paisagens por meio do filtro misterioso que é feito pela garrafa de cachaça colocada entre a câmera e as cenas focalizadas. As imagens filtradas pela materialidade vítrea e pela transparência embaçada da garrafa recusam o olhar que ousa tentar atravessar o conteúdo líquido da cachaça, e devolvem peculiares paisagens insinuadas, distorcidas, deformadas e liquidificadas. Por momentos, são imagens bêbadas, distantes das paisagens originais. Porém, o movimento de retirada da garrafa de cachaça a cada gole sorvido antropofagicamente pelos membros do grupo, cria alternância entre as paisagens filtradas, desfocadas, embriagadas, e as paisagens sem filtro, focadas, sóbrias, realistas.
A cachaça acompanha a própria História do Brasil desde o século 16, havendo relatos abundantes com o ciclo econômico da cana de açúcar. A união da técnica de destilação, herdada dos árabes pelos portugueses, com o conhecimento e o trabalho dos escravizados provenientes da África no labor nos engenhos de açúcar do período colonial, gerou o domínio e o aprimoramento dos processos de fermentação do caldo de cana e de destilação da cachaça. Por sua origem ligada à senzala, a bebida foi objeto de preconceito, repressão e condenação e, como tudo o que era relacionado aos afrodescendentes (a capoeira, o samba e o candomblé), integrou o rol dos elementos proibidos e depois transformados em símbolos culturais do país, mas permanecem ainda rejeitados pelo racismo estrutural.
A cachaça ou pinga foi tachada como bebida de preto e pobre, de pária e deteriorado, dos condenados à clandestinidade, à marginalidade e à exclusão. Por toda sua história e contextualização social, a cachaça é uma bebida que destoa das imagens de riqueza e pompa que caracterizam as celebrações da Independência do Brasil, feitas pelos agentes do poder e pelas classes elitizadas, que brindam com bebidas sofisticadas em taças de cristal, seja há um século, seja agora no bicentenário. A imagem mais próxima da cachaça associada ao poder, a meu ver, é do ex-presidente Lula tomando a sua branquinha, mas trata-se de um homem cuja origem é o povo nordestino, pernambucano fugitivo da seca e operário sindicalista, alvo constante de preconceito classista.
Na verdade, a cachaça bebida pelo Grupo EmpreZa para comemorar a independência brasileira (ou a falta dela, quem sabe?), lembra que seu trago traz alívio ao paladar daqueles que são abandonados pelo poder, os pobres que ainda não sabem o que é independência, liberdade e cidadania, que são dependentes, aprisionados pelo sistema de exploração dos pequenos, daqueles que não foram lembrados ou daqueles que foram soterrados na hora de levantar os monumentos.
Ao fruir Paisagens Destiladas – Salve! Salve!, o espectador experimenta a sensação de embriaguez devido ao conjunto das operações efetuadas pelo Grupo EmpreZa: a distorção da realidade; a colagem de três imagens; a lembrança dos lugares e acontecimentos das paisagens destiladas pela cachaça; o fluxo do cruzamento entre passado e presente; o movimento de rebobinar a fita VHS para frente e para trás num embaralhar de tempos; o filtro cor de rosa a dar uma pitada de ironia; o baixar do volume de cachaça e o movimento balançante do líquido no interior da garrafa; a fusão dos sons das falas dos artistas com as demais vozes do filme, com o fragmento do Hino da Independência, com a narração da parada militar e com o ruído do trânsito urbano potencializando o ambiente de loucura, a experiência da tontura e a sensação de ruptura com a ordem. No Ipiranga do Grupo EmpreZa, as gotas de cachaça que escorrem da garrafa fazem a imagem suar e lacrimejar.
A obra da série Paisagens destiladas – Salve, salve! foi concluída há 16 anos e processada há quase 18, portanto problematizou a função do monumento antes que chegasse ao circuito de arte o questionamento feito sobre esse tipo de marcador da memória coletiva instalado no espaço público, e que hoje é recorrente no debate que busca deslegitimar os heróis do processo colonizador.
Por fim, neste momento de comemoração do Bicentenário da Independência, de adoração insana ao coração do primeiro imperador, de corrosão dos símbolos nacionais pelo patriotismo imbecilizado e fascista, a obra do Grupo EmpreZa tem ampliado seu sentido crítico. Saibamos fruí-la com o prazer de beber uma boa cachaça. Salve! Salve!