[Coautor: Jonathan Postaue Marques[1]]
Existem questões filosóficas que ultrapassam os séculos. Por exemplo, tanto Safo de Lesbos (604 a. C – 570 a. C) e Platão (428/427 a.C – 348/347 a.C), na Antiguidade grega, quanto Jacques Lacan (1901-1981) e Byung-chul Han (1964), na contemporaneidade, confrontam-se com uma mesma questão: o que é o amor? Considerando a importância do tema, vamos apresentar de modo introdutório como os diferentes períodos históricos trataram desse assunto e quais impasses enfrentamos na atualidade ao discuti-lo.
Inicialmente, coloca-se em primeiro lugar a figura de Eros, deus da mitologia grega, associado ao amor. A poetisa Safo de Lesbos, ao se referir a Eros, evoca uma dimensão patológica, em que é possível identificar o deus como responsável por afligir um mal-estar físico e mental aos seres humanos que são por ele inspirados, tais como: dificultar a visão, causar queimação na pele, zumbido nos ouvidos, tremor, perda de si e amolecimento das juntas. Em suma, os poetas tinham uma concepção de que o deus era nocivo e suplicavam para que sua ação não os alcançasse. Posteriormente, Platão promoveu uma ressignificação de Eros por meio do diálogo O Banquete (2015). Nessa obra, o deus é enaltecido com elogios e suas qualidades são ressaltadas. O tema de discussão (Eros) é definido por Fedro (personagem do diálogo), que demonstra indignação com o fato de que um deus de tamanha relevância nunca tenha sido reverenciado por meio de hinos ou elogios. Ele afirma: “E a Eros nenhum homem teve a coragem de dignamente hinear. Tão importante deus é assim negligenciado” (PLATÃO, 2015, p. 21).
Os personagens do diálogo produzem diferentes discursos sobre Eros: ele é apresentado por Fedro como responsável por gerar virtudes entre amantes; Pausânias afirma que ele é duplo, podendo gerar vícios e virtudes; Erixímaco o apresenta como um tipo de cola do universo que une opostos (por exemplo, quente e frio); Aristófanes o define como aquele que promove o retorno à unidade; Sócrates o estabelece como condição para a busca do conhecimento e, por fim, Alcibíades prefere falar de seu amor por Sócrates.
Desse modo, nota-se a importância do amor na Antiguidade grega. O tema foi recorrente entre poetas e filósofos, seja por meio de críticas, seja por meio de elogios.
No período contemporâneo, o psicanalista francês Jacques Lacan retoma a questão do amor em sua obra O Seminário, livro 8: A transferência (1992), na qual faz uma análise psicanalítica, ou, em termos lacanianos, uma “experiência psicanalítica”, (LACAN, 1992, p. 32) da obra O Banquete, de Platão. Lacan expressa sua noção de amor por meio do desencontro entre dois personagens do diálogo, a saber, Alcibíades e Sócrates. O psicanalista afirma que Alcibíades ama Sócrates a ponto de louvá-lo, e pretende que Sócrates afirme seu amor por ele com palavras. Contudo, o que é espantoso não é o grande amor de Alcibíades, mas sim o motivo da não correspondência de Sócrates para com ele. Ao ser elogiado por Alcibíades, Sócrates diz: “Aqui onde você vê alguma coisa, eu não sou nada” (LACAN, 2010, p. 197). Segundo Lacan, Sócrates diz isso porque sabe o que é o amor e, justamente por saber, ele está impossibilitado de amar, uma vez que tem consciência de que o amor é uma falta. Sócrates reconhece o amor (falta), portanto, nega-o e acredita que nada pode oferecer a Alcibíades. Segundo Lacan, o que o filósofo não sabe é que, no fim, ele ama Alcibíades, porém ama-o inconscientemente e, sendo o amor inconsciente, sua influência é inevitável. Sócrates nega Alcibíades conscientemente, no entanto, não o faz em seu inconsciente, lugar em que se encontra o registro do amor como falta.
Portanto, para Lacan, o amor é uma falta que se dá no registro do inconsciente, ou no Real (uma instância inassimilável da realidade), ou seja, o amor tem algo de impossível, é sempre um risco, uma falta, um desencontro constante, como no caso de Alcibíades (amante) e Sócrates (amado). Nesse sentido, para o psicanalista, amar trata-se de aceitar a falta; amar seria suportar o irreparável; seria compartilhar uma falta e não uma completude. E quanto à consciência desse amor: é possível notar naturalmente este amor inconsciente? A resposta é não. Ter ciência dessa falta – que está presente no inconsciente – é uma tarefa complexa, requer uma análise profunda de si e, além disso, o que pode ser percebido no cenário atual é uma aversão à concepção de amor como falta.
Essa aversão é retratada pelo filósofo Byung-Chul Han em sua obra Agonia do Eros (2017). No livro, é possível identificar de maneira clara a crise do amor. Para Byung, o amor contemporâneo é demasiadamente positivo, e isso o aflige, pois o amor, em sua essência, é algo negativo. O amor negativo diz respeito ao encontro da alteridade do outro, que é diferente de mim, portanto, amar envolve riscos, pode ser devastador, mas, ao mesmo tempo, transformador. Em contrapartida, o excesso do caráter positivo do amor está atrelado ao investimento feito somente em si; dessa forma, produz-se mais do mesmo, o que resulta em uma subjetividade cansada de si, pouco inventiva e contrária ao risco do amor. Como argumenta o filósofo Alain Badiou, vivemos atualmente na sociedade do cálculo individual, na qual cada um deve proteger o que tem, as previsões devem ser feitas a longo prazo para garantir segurança, assim, o risco é sempre evitado (1994, p. 13).
O amor, em sua dimensão de falta, está se extinguindo, pois o modo de vida capitalista está constantemente nos incentivando a evitar o risco e acumular capital. Tal acúmulo progressivo não se coaduna com o “amor negativo”, de Byung-Chul Han, e com o “amor como falta”, de Lacan, já que não existe espaço para o risco de atirar-se ao diferente ou para o desconhecido.
A descrição de amor negativo, proposta por Byung-Chul Han, versa sobre o risco de entrar em contato com a alteridade, amar seria encontrar o outro, que é território do desconhecido. O excesso de positividade, descrito pelo filósofo, também é contrário ao amor lacaniano, que trata de um encontro impossível, uma incompletude, uma falta. Portanto, as definições de amor de Lacan e Byung-Chul Han aproximam-se, na medida em que o psicanalista e o filósofo apresentam o amor como algo que envolve riscos, impossibilidades, exposição e vulnerabilidade.
Segundo Byung-Chul Han, na atualidade, nos deparamos com uma crise amorosa, na qual o amor contemporâneo se reveste com um tom business e segue a mesma lógica do capitalismo, fugindo de qualquer possível contradição, inconcretude e risco. Esse amor contemporâneo, ligado à lógica capitalista, é entendido como um tipo de empreendimento em que a todo momento se deve buscar o sucesso, em suma, o amor positivo seria semelhante a uma empresa que necessita de produtividade e lucro, evitando qualquer possibilidade de fracasso. Ou seja, o que não é compreendido pelo amor positivo é o fato de que, segundo Lacan e Byung-Chul Han, Eros é, em primeiro lugar, risco. Quando entramos em contato com o outro e vivenciamos as contradições desse contato, obtemos a possibilidade de experienciar o amor, pois é nas contradições do amor que podemos vivê-lo em sua essência: “algo é vivo apenas enquanto contém em si a contradição, e pode ser que essa força consista precisamente em apreender e sustentar em si essa contradição” (BYUNG-CHUL HAN, 2017, p. 52).
Sem condições favoráveis para vivenciar a “negatividade”, de Byung-Chul Han, e a “falta”, de Lacan, distanciamo-nos cada vez mais daquilo que é a experiência do amor. Negar o risco, as contradições e a incompletude radical do ato de amar resulta, no fim das contas, em maior sofrimento do que simplesmente nos permitirmos vivenciar o risco e a falta do amor.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito. Tradução: Emerson Xavier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro. Editora: Relume-Dumará, 1994.
HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. 2. ed.. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
PLATÃO. Apologia de Sócrates e Banquete. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Martin Claret, 2002.
[1] Professor de Filosofia da SED/MS – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o terceiro texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.