[Curadoria de Luís Araujo Pereira; seleção e texto de Miguel Jubé]
[1]
Deixe o meu endereço no seu coração gravado
[para Malva Barros Oliveira]
Retire o meu nome do meio dos outros
a quem você tortura
com esses blocos de granito
na vã esperança de veicular a beleza
pela cor, som, figura e outras amenidades
como se conseguisse maquiar a natureza,
tornar verde a azeitona, e verde um pé de alface.
Retire o meu nome da lista pesada
que barra sua caixa de saída
e trava minha caixa de entrada.
Deixe para os incréus as asas da esperança,
o louva-a-deus de mãos postas,
a formatação, a fonte
de onde não jorra a água viva que a sede estanca
e está contida no âmago da palavra,
não nessa rede de intrigas, nessa internet vedete,
que para vender seu peixe lança mão de expedientes
e joga pesado, mesmo se a podridão já se adianta.
Deixe meu endereço apenas no coração.
Lance mão dele quando estiver sem mãos.
Conte com ele para o dia a dia
da beleza intransmissível
da alegria de um abraço, do beijo doce de um filho
e abuse dele à vontade
para dizer só com palavras
que entrou em erupção o seu vulcão em lavas
de fogo demolidor, e que um fósforo aceso e desprezado
queimou quilômetros da mata virgem
em que você jamais havia penetrado.
Deixe o meu endereço no seu coração guardado
porque haverá ocasião
em que ele sairá do peito para ficar do seu lado,
mesmo calado, mesmo esperando
que se transmutem o tempo e as estações
e novos céus e novas terras já se abracem
para falar de amor às multidões.
Cave Carmen (2024)
***
[2]
Rimbaud et l’air
[para Fabrício Marques, com quem condivido este poema, pelo toque & pelo mote]
Poeta sou,
mas
pelo avesso
chegado ao extremo:
não faço versos.
Verti ao olho
& al dente
uma estação no inferno.
Não vou nessa de Dante:
é sem acompanhante
que trafego
pelas profundas de mim mesmo.
Cave Carmen (2024)
***
[3]
Balanço, afinal
[dedicado a Silvana Guimarães]
Não sou a palmatória deste mundo caduco.
Não sou Bauducco, panetone.
Minhas mãos não batem palmas
nem amassam o sweet sour food com o suor do meu rosto.
Toda causa em que creio, antes de crer, abraço-a
e, depois, tome polca.
Do mundo, esse virtual, já tiro o time.
Não adentrei o outro a que resisto
e, insistem, existe,
no qual passeio ao longo e ao largo a minha história.
Nem sei mesmo se sou, por mais que uma expertise
me perguntasse atônita: a essa altura?
Sinto vertigens, visse?
Tresando. Rastejei.
Não a troco do pão de cada dia,
vindo sempre em maná, de cambulhada.
Gosto insosso.
Coleando, cobra-d’água, sem bolsa de veneno
e sem defesa.
E, mais ou menos, sem água.
Sigo em frente. O mundo é grande e pequeno,
disse o mestre ao que desse
em sua lição de coisas.
Cumpro sem alegria o meu dever.
Vagamundeio outras galáxias.
Há mundos paralelos.
E tudo por fazer.
Cave Carmen (2024)
***
[4]
Racial
o preto e a branca
a branca por cima
para o americano
o branco e a china
o branco por cima
para o americano
o branco e a chicana
em baixa na cama
para o americano
e a verde retina
da brasilatina:
por baixo ou por cima?
preposicionando-se…
Coram populo (2024)
***
[5]
Hard-heart
Não nos conhecemos,
mas em altas horas
alçamos o voo
no globo da morte
(inter/intra/nautas)
de acordados sonhos
e assuntos em pauta
nos fios da web.
E é como se fôramos
amigas de infância
na mesma cidade
onde temos casas
que não enclausuram
a necessidade
de tecermos juntas
as malhas da web.
Como se gaivotas
sobrevoando mundos
em outras memórias
que da estratosfera
abrangessem tudo
desse azul profundo
(rasante mergulho)
nos mares da web.
Hard-heart, o nosso,
rijo das batalhas
que nada têm hoje
de corsos, confetes
e lança-perfume
salvo as serpentinas
(braças quilométricas)
de fluidos & luzes:
por dentro da web.
Quantum satis (2024)
Maria do Carmo Ferreira, Carminha, nasceu em Cataguases (MG), em 21 de dezembro de 1938. Aos 14 anos, tornou-se poeta por excesso de amor. Morou em Belo Horizonte, São Paulo, radicou-se no Rio de Janeiro por mais de duas décadas e, finalmente, mudou-se para Niterói (RJ). De 1969 a 1973, viveu dois anos na Europa e dois nos Estados Unidos, cursando mestrado em Literatura Comparada. Lecionou língua e literatura brasileira no Colégio dos Graduados, Universidade de Illinois. Aposentou-se da Rádio MEC, onde serviu por 30 anos como criadora, tradutora, redatora, produtora e coordenadora de programas literários e literomusicais. Sua estreia autoral se dá aos 85 anos de idade, nos três livros que compõem sua Poesia reunida [1966-2009] – Cave Carmen, Coram populo e Quantum satis –, com organização de Fabrício Marques e Silvana Guimarães e publicada pela martelo casa editorial em novembro de 2024. Uma poesia absurda, lírica sagaz e violenta, que se deixa construir pelas sugestões do coração e da linguagem, no palpitar que não se deixa seccionar forma de conteúdo. Realmente, “uma coisa o caso dessa moça”.