Quando resolveu que queria estudar cinema na União Soviética, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Márta Mészáros enfrentou todo tipo de resistência. “Uma mulher que queria ter uma carreira nessa área era uma piada. Os homens riam de mim”, recordou-se ela em entrevista ao The Guardian em julho do ano passado, em uma reportagem em homenagem aos 90 anos da diretora húngara, completados em setembro de 2021. A tais provocações, Mészáros contou que sua reação era dar risadas também – e foi com essa disposição bem-humorada, mas sem deixar de ser contestadora, que ela se tornou um dos nomes mais importantes no efervescente cenário cinematográfico que despontou a partir dos anos 1960 na Hungria, além de ser pioneira na abordagem de temas considerados femininos no cinema.
Ao longo de sua carreira, a cineasta dirigiu mais de 60 filmes, entre longas-metragens de ficção, documentários e produções para a TV. Mesmo octogenária, ela continuou na ativa – seu último trabalho é de 2017, o drama Aurora Borealis. O auge da sua produção ocorreu, no entanto, entre as décadas de 1960 e 1980, e uma recente mostra na plataforma de streaming Mubi dedicada à autora destacou justamente essa fase da trajetória dela. Nos nove filmes selecionados, é impressionante ver como a obra da diretora conserva o seu vigor e continua sensivelmente atual, não só pelas questões que ela explora relacionadas às mulheres, como maternidade, emancipação sexual, violência doméstica, desigualdade no trabalho, acesso à educação, como também pela forma inovadora em que traz à cena aspectos da história e da geopolítica mundiais revisitados a partir de um olhar feminino. Porque o cinema de Márta Mészáros é, acima de tudo, político. Mas também muito pessoal, já que a trama de vários de seus filmes é inspirada na sua própria vida.
Na infância, a diretora viveu o trauma da dupla orfandade. Seu pai, o escultor László Mészáros, era um ativista comunista que se refugiou na URSS em 1936, para escapar às perseguições do governo húngaro, aliado da Alemanha nazista. Em 1938, ele foi preso e morto durante os expurgos stalinistas. A mãe de Martha, que estava grávida, não sobreviveu ao choque. Sozinha em um país estrangeiro, a menina foi parar em um orfanato russo. Adolescente, regressou a Budapeste, para depois voltar à URSS a fim de estudar no VGIK, o prestigiado instituto de cinema de Moscou. Seu retorno definitivo à Hungria, onde começou sua carreira dirigindo documentários, ocorreria em 1956, o mesmo ano da Revolução Húngara, logo sufocada pelas tropas soviéticas.
As heroínas dos filmes de Márta Mészáros – operárias, estudantes, artistas, donas de casa, proletárias ou burguesas – vivem situações que evocam, de uma maneira ou outra, essa trajetória da cineasta. A começar pelo seu filme de estreia na ficção, The girl (A garota, 1968), que traz à tona o tema da orfandade. A protagonista é uma jovem operária criada em um orfanato público que, depois de muito investigar, descobre o paradeiro da mãe. Ao chegar na aldeia da família materna, a moça é recebida com frieza e desconfiança e constata que a mãe se casara novamente e tem outro filho. Esta, por sua vez, prefere tratar a filha por “sobrinha”, para não ter de revelar um passado que a envergonha e representa uma ameaça à sua estabilidade familiar. Nesse filme em preto e branco rodado com poucos recursos, a diretora contrapõe a modernidade juvenil da “garota”, sua independência econômica e sua emancipação sexual, à condição de subserviência da sua mãe, atada ainda aos preconceitos e ao rígido código moral de uma Hungria rural que resiste às transformações do regime socialista.
Apesar da estreia promissora na ficção com The girl, o reconhecimento internacional de Márta Mészáros viria sete anos depois, com Adoption (Adoção, 1975), que lhe rendeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim, além da honraria de ser a primeira mulher a conquistar esse prêmio. Novamente, maternidade e abandono são abordados por meio do relacionamento entre duas mulheres: uma de meia-idade, frustrada com a recusa do amante diante da sua proposta de engravidar dele, e uma adolescente rebelde rejeitada pelos pais que sobrevive em instituições públicas para menores. Nessa trama intimista e comovente, destacam-se ainda outra temática recorrente na filmografia de Mészáros – a cumplicidade e a solidariedade femininas – e o uso intenso de close-ups que se prolongam nos rostos dos personagens, captando as sutilezas das suas emoções, um recurso que também se constitui como uma das marcas da diretora.
Na sequência, Nine months (Nove meses, 1976), como o título revela, traz mais uma vez à tona a questão da maternidade, mas daqui da perspectiva de uma jovem mãe solteira que acaba cedendo ao assédio do seu chefe no trabalho e vê-se obrigada a enfrentar uma nova gravidez. Porém, o relacionamento desanda diante do comportamento agressivo e machista do companheiro e dos preconceitos da família dele. Neste que foi o primeiro filme em cores da diretora, o final é icônico: aproveitando que a atriz protagonista (Lili Monori) estava de fato grávida, Márta filmou o parto e o reproduz em cena sem cortes – a realidade tomando de assalto a ficção, como um soco na tela.
Já no sofisticado drama histórico As herdeiras (1980), com a atriz francesa Isabelle Huppert no início de carreira, a cineasta trata de forma pioneira e ousada uma história envolvendo um típico caso de barriga de aluguel: uma mulher casada, pertencente à alta burguesia húngara, atormentada com o diagnóstico de infertilidade e ao saber que o pai deixou seu testamento para os futuros filhos dela, propõe a uma amiga judia solteira que engravide do seu marido. O plano dá certo, mas à medida que o trio espera pela chegada do bebê e herdeiro, instala-se um clima de ciúme e desconfiança, sob o pano de fundo do avanço da ideologia nazista na Hungria em meados da década de 1930.
Os filmes de Mészáros também podem ser vistos como uma espécie de crônica social da Hungria socialista, enfocando especialmente a dura rotina dos trabalhadores das fábricas, mas sempre a partir da experiência feminina, suas particularidades emocionais e econômicas. Essa realidade ganha relevo tanto nos já citados The girl, Adoption e Nine months, como também em The two of them (Entre mulheres, 1977), cujo cenário é uma fábrica onde a diretora do local e uma das operárias estabelecem entre si um forte laço de amizade, que as ajuda a enfrentar a dupla opressão do trabalho, sob a rígida vigilância do aparelho de Estado, e dos seus casamentos, marcados por relações abusivas. Mesmo no musical juvenil Don’t cry, pretty girls (Não chorem, garotas, 1970), em que a diretora enfoca o cenário da música pop húngara – fortemente influenciada pelos Beatles e congêneres, mas que tenta criar uma identidade própria buscando inspiração na obra de poetas locais –, esse movimento da contracultura é abordado a partir do cotidiano de jovens mulheres, e seus namorados, que trabalham em uma indústria de Budapeste.
Em todos esses filmes, driblando a censura estatal, Márta não deixa de apontar as contradições do regime socialista – a condição precária dos trabalhadores oposta às benesses usufruídas pelos altos funcionários e dirigentes do partido; o ambiente de repressão que procura calar as vozes dissonantes; a persistência dos valores patriarcais e machistas na sociedade húngara, em nítido contraste com a propaganda partidária pela criação do “novo homem”. Em uma produção da década de 1960, Binding sentiments (Sentimentos vinculados, 1969), um drama intimista sobre uma mulher de meia-idade que tem de lidar com a súbita morte do marido, pertencente ao alto escalão do governo, os elementos cênicos por si só já denunciam essas incoerências. O ambiente de opulência em que vive a personagem, com um armário repleto de roupas de grife, carro de luxo com motorista particular e uma suntuosa casa no campo, escancara os injustificados privilégios da elite governamental.
Mas é na trilogia em que Márta Mészaros recria de maneira mais direta a sua própria trajetória – Diary for my children (Diário para meus filhos, 1984), Diary for my lovers (Diário para meus amores, 1983) e Diary for my mother and father (Diário para minha mãe e meu pai, 1990) – que sua visão crítica do regime socialista na Hungria, sobretudo no período da dominação stalinista, torna-se mais acentuada. Dos três, Diary for my children, merecidamente premiado no Festival de Cannes, é o mais tocante, centrado na figura da adolescente Juli, uma órfa que é adotada por Márta, dirigente implacável do partido em Budapeste. Obcecada em descobrir o destino do pai – um artista plástico que fora preso na URSS e desaparecera –, Juli entra em confronto aberto com Márta, questionando a repressão e as prisões arbitrárias em seu país. E para escapar do ambiente opressivo de casa e da escola, ela se refugia no cinema, onde encontra um espaço para o sonho e a imaginação, mesmo que tenha de assistir vez ou outra às sofríveis produções do realismo socialista.
“Uma mulher independente, que se encontra em uma situação em que precisa tomar uma decisão sozinha, é a personagem central de todos os filmes que fiz”, definiu Márta Mészaros ao ser indagada sobre o caráter das suas heroínas. Seu cinema ao mesmo tempo lírico e realista, com protagonistas complexas, independentes e rebeldes, precisa ser continuamente revisitado, não só por sua alta qualidade estética e por seu vigor criativo, mas também para servir de exemplo e inspiração nestes tempos de ameaçadores retrocessos para as mulheres.