Let’s dance little stranger
Show me secret sins
Love can be like bondage
Seduce me once again.
(Dance with me, Mélanie Pain/ composição de Steve Bator e Brian James)
Noite e dia se completam no nosso amor
E ódio eterno
Eu te imagino
Eu te conserto
Eu faço a cena que eu quiser
Eu tiro a roupa pra você
Minha maior ficção de amor
Eu te recriei só pro meu prazer.
(Só pro meu prazer, Heróis da Resistência/ composição de Leoni e Fabiana Kherlakian)
Nunca um homem, nunca um amor, nunca. Ou quase nunca. Sempre? Jurubatuba, de Carmo Bernardes (1915-1996), fez 50 anos essas noites, com carga poético-semântica bastante densa, e uma proposta estética validada por quem sabe, e gosta de, ler.
Embora já tivesse publicado dois livros de crônicas em 1969, Bernardes estreia na ficção em 1972, aos 57 anos, justamente com o romance Jurubatuba e a coletânea de contos Reçaga. Do meio século deste último, alguém há de falar, ou já falou, em algum lugar. Do primeiro, me ocupo basicamente em função de um personagem muito caro aos sentimentos desta revista.
Ermira é a menina dos olhos de Ramiro, narrador e protagonista do romance. Amor à primeira vista. Ela é o epicentro de uma narrativa grandiosa sobre o Cerrado. Ermira, meus incensos, meu sorriso escovado com olor florido, carnaval insano de meus delírios, minha juruva, meu cheiro de chuva, águas da minha sede.
Ramiro a viu pela primeira vez em plena verve dos festejos juninos, na noite de São João, quando ele, de passagem, chegara à Fazenda Jurubatuba e se enturmou. O local era propriedade do seo-Simeão Bueno.
Não aguentando o peso da paixão instantânea, como âncora jogada ao mar, por mais de dois anos prostrou-se ali nos sertões de Goiás, oferecendo seus préstimos de peão bom de laço e multitarefa, num tempo perdido do final da primeira metade do século XX, provavelmente.
Vinha de Minas rumo ao Mato Grosso, intencionando passar por Jaraguá, ladeando, por trilhas menos batidas, o histórico Caminho de Goyazes (informação apenas sugerida).
Esse encontro de Ramiro com Ermira é o bóson de Higgs da narrativa muito bem urdida pelo autor. Um clássico da literatura feita em Goiás. Aparentemente jovem, morena de “olhos tão bonitos e aguados”, figura enflorada de encantos, Ermira era mulher de seo-Simeão, supostamente avançado na idade. Era festeira, faceira e simpática com os convidados.
Ao falar com Ramiro, seu rosto chegou tão perto do dele que “o cheiro de dentifrício soprado do seu hálito morno chegou a entontecer” o forasteiro. Ele sentiu que havia ali uma janela aberta – quiçá uma porta – por aquela moça “mansinha e liberal”, que “mordia o beiço”, dona de uma “conversinha mangosa”. Foi alimentando expectativas até que aconteceu.
Os dois se entregam ao desejo, e passam a fazer amor em vários lugares da fazenda. Dono irrestrito da voz diegética, Ramiro diz que transavam na casinha do monjolo, no cafezal, davam umas rapidinhas dentro da moita de bambu, e até “em cima dum tapete de capim macio” sob a sombra de um pé de mangaba.
Mas a primeira vez, diz Ramiro, havia sido “no duro do assoalho do quartinho da sala”, praticamente debaixo do nariz do marido traído, que estava sempre viajando. Isso, no entanto, é ele quem diz. Ermira não diz nada.
O leitor
Se é Ramiro quem fala, vamos nos aproximar dele um pouco mais, para ver que figura peculiar é essa. Homem inquieto, saiu de sua terra natal por se achar pouco valorizado. Era conhecido lá como “Ramirinho da seá-Joana”. Não gostava da pecha.
Para piorar a situação, sua cidade não tinha perspectiva, era um lugar de desmando político, com pessoas falsas e aproveitadoras, segundo ele mesmo diz. Sentia-se um “coió-sem-sorte”, e por isso ganhou o mundo, sem permitir que “diabo nenhum” lhe “botasse sela”.
Mas, talvez, o motivo tenha sido um crime inconfesso, porque havia travado inimizade com um proprietário de terras arrendadas por ele. Em Goiás, percebeu que eram o mesmo desmando e a mesma exploração de quem tinha posses sobre quem não tinha nada. Nestes e em outros trechos, vemos uma crítica social muito acentuada.
Com personalidade arredia, “meio selvagem, meio desconfiado”, arisco feito burro brabo (“tão agreste o meu gênio”), Ramiro é conservador, machista (“derradeiro ponto de desmoralização é um homem andar governado por mulher”) e preconceituoso às raias do racismo.
Tem horror à gente cabocla e pobre, subjugada. Mas tem um senso de justiça que o coloca em defesa dos que ele considera incapazes de lutar contra a maldade, como crianças e animais.
Para além dessas características conservadoras, que são atualíssimas – movendo atitudes de inúmeras pessoas ainda hoje, da zona rural às grandes cidades –, Ramiro sabia “articular os pensamentos” e “ter bom cálculo das coisas”. Sabia ler, e conhecia até cinema, mostras de que era de família bem situada (filhinho da mamãe).
Além disso, sabia ler o mato e os bichos. Enquanto cavalgava pelo Cerrado, seus sentidos iam colhendo elementos que colorem a paisagem, tanto com a exuberância da flora carregada de:
“Pequizeiro alvejado de flores”, mirindiba, buritizal, baruzeiro, pau forte, sicupira-roxa, mutamba, guariroba, cipós diversos como o cipó roseta, larina e cipó-cabeludo, além de gameleiras, assa-peixe, ingazeira, cambarás, erva-tostão (na beira da ponte), sarã rasteiro, vergôntea, jatobás, jurubeba e inharé; quanto com a riqueza da fauna, replena de:
Anus-brancos, seriemas, pica-paus, cupins, suindaras, gaviões-caracarás, passopretos, codornas, perdizes, inhambus, beija-flores, juritis, fogo-pagou, bem-te-vis, jaós, caburés, corujões, araraúnas, papagaios, quiri-quiris, emas, jacus, antas, paca, tatu, cutias, onças, veados, ouriço-caixeiros, gambás-saruês, mucuras, boiciningas, abelha jataí, “miudinha e ruivinha e de asas melosas”, mangangá, “rusguento e de terríveis ferroadas”.
Também sabia ler as pessoas nas relações de poder e de afetos, mas não sabia ler o amor. E é tudo isso que vemos na leitura de Jurubatuba. Vemos um protagonista vacilando numa vivência oscilante, mas uma vivência complexa, marcada pela tensão da existência e pela ambiguidade dos gestos.
Tanto é assim que não podemos dizer com clareza se Ermira de fato andou “pulando o cambão” com ele ou não. Há muitos sinais que nos fazem desconfiar, tanto quanto ele desconfia de Ermira e do mundo.
Voo livre e sem limites
Em primeiro lugar, no momento de seu ato confessional, Ramiro está distante dos fatos narrados. “À medida que os anos passam”, ele já é outra pessoa, possivelmente já com outro nome (conforme vemos em Nunila [1984], segundo romance da trilogia que fecha com Memórias do vento [1986], nos quais Ermira é só uma lembrança distante – e aqui faço uma observação extratrama sobre a própria trama).
Mas, além disso, ele era alcoólatra. Por onde andava, carregava uma garrafa cheia, “aljofrando jazente no embornal, na cabeça dos arreios”. Quando ia conversar com o patrão, estava sempre “meio bêbado, conforme eu costumava ficar”. Era fumante, e sofria com pesadelos constantes.
Quando ia para o arraial de Mocambinho, ficava “trespassado e cambaleante de bêbado”, tão bêbado que uma vez confundiu a farmácia com um boteco. O alcoolismo dança metaforicamente com o fato de ele estar embriagado de tesão por Ermira. “Eu me achava em estado de meia demência.”
Em outro momento, ele diz: “Ermira me dominando numa tal medida que, quando, às vezes, eu saía para campear, ficava desorientadinho”. E assim ele vai tirando mapa de sua alma, “dormindo ou acordado, Ermira não me saía do pensamento”, extraviando-se “num descaminho mais cheio de abismos”.
Que Ramiro amou Ermira, não há dúvida. Ele se encantou com sua beleza, e uma mulher bonita quando se expressa com delicadeza e certas mesuras para um homem, há sempre o risco de ele interpretar como abertura de intimidades.
Nessas horas, todos nós temos asas. Quando elas são impulsionadas por uma garrafa de cachaça, o voo é livre e sem limites. Mesmo assim, não dá para dizer que não houvera nada.
O problema é que, apesar de todos os detalhes de como ela se comportava insinuante para ele, sempre há sinais adversos. A certa altura, ele diz: “Ermira era toda muito bonita e, nela, o que mais me encantava eram os braços.”
O fetiche nasce das inclinações de cada um, mas, convenhamos, fica parecendo que a única parte do corpo de Ermira que ele consegue ver descoberta são os braços dela. E ele consegue embaralhar ainda mais a situação, quando afirma:
“Mesmo trajando roupa de manga comprida, era eu bater os olhos em seus braços, corria-me no espinhaço uma espécie de comichão e eu pegava a enxergar muitas sombras embaralhadas e, às vezes, a vista escurecia.”
Esta parte, sem dúvida, é uma alusão ao romantismo, do qual Bernardes coloca sua narrativa como contraponto. Afinal, sua estética é moderna. Em A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, Augusto se apaixona por Carolina, a Moreninha da história.
Em certo momento, Carolina está na cama, adoentada, e faz um gesto inusitado de descer do leito, colocando uma das pernas para fora, “até tocar com o pé no chão, de modo que ficou à mostra até o joelho”.
E aí, Augusto vai à loucura por ter visto aquilo. “Pobre Augusto! … Não te chamarei eu feliz?… Ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!”
Se aproximarmos as duas imagens, veremos os braços da morena do Cerrado como um deslocamento ambíguo. É ao mesmo tempo anacrônico (anterior não só ao comportamento moderno, mas ao romântico) e antirromântico, porque risível diante dos joelhos da morena do litoral.
Há um notável arco irônico nessa comparação, que mostra o quanto Bernardes estava atento ao construir seu personagem, e o quanto ele é complexo.
Capitu do Cerrado
Ramiro nunca havia tido aproximação com uma mulher “toda muito bonita” daquele jeito, de “corpo estuante”, embora já tivesse tido casos com mulheres casadas. “Meu corpo nunca tinha encostado, a fim de desfruto, em nenhuma mulher de alguma formosura.”
Ermira era alegre, gostava de cantar, tinha a voz rouca e ameaçava gaguejar na pronúncia de algumas palavras, além de seu sorriso mostrar dentes ligeiramente encavalados, que lhe conferiam mais charme do que estranheza. Ou não.
Talvez a beleza dela tenha sido colocada no contexto amoroso pela força imaginativa do desejo dele, porque em determinado momento, ele mesmo diz:
“Tudo aquilo que voltei a conferir, passado anos depois, me acachapou de decepção, porque nada encontrei naquelas proporções que figuravam na memória.” (…) “Quem sabe ela não era assim nada?”
Além dessa série de sinais que põem uma pulga atrás da orelha do leitor, outro gesto desconfiante é o fato de ele se colocar como um cachorro abanando o rabo para a dona. “Onde ela tirava o pé, aí eu botava o nariz.”
Frase semelhante ele usa para falar do cachorro da fazenda, o Dingo, um fila rajado e gigante que passou a acompanhá-lo para todos os lados como se fosse seu: “Onde eu tirava o pé ele botava o nariz”.
Sua personalidade vacilante o faz duvidar das intenções de Ermira para com ele. Ora ela é uma “mulher desmiolada”, “aquela doida”, ora é “Ermira dos olhos cálidos”, “tão meiga e delicada”, “figura cativante”, “uma boneca de mimosa”. Ora é “ingrata”, “a diaba” bancando “a santinha”, “me tapeando com iludição”, uma Capitu do Cerrado.
A comparação é inevitável. Ramiro acusa Ermira de ser exatamente aquilo do qual Capitu – de Dom Casmurro, de Machado de Assis – era acusada por Bentinho, via observação do senhor José Dias, ter “olhos oblíquos de cigana dissimulada”.
Ermira, diz o narrador, ficava da janela derramando “seu olhar morteiro, toda cheia de fosca”. Ou seja, não só seu olhar era dissimulado, como toda ela fazia fosquinha (dissimulava): seu sorriso, sua voz, seu corpo.
O duto que liga as palavras de Ramiro e as paisagens desta narrativa produz uma dualidade que afeta diretamente a figura de Ermira. Neste sentido, é mais ou menos o que ocorre com Capitu.
Ermira é, portanto, uma espécie de Capitu pela dubiedade de ter sido ou não amante de Ramiro. Ele diz que sim, tal como Bentinho diz que Capitu fora amante de Escobar. Mas, em Jurubatuba, há quase uma inversão da imagem machadiana. É como se Escobar estivesse contando um caso de amor com Capitu, nos mesmos termos narrados por Bentinho, empregando a ambiguidade em primeira pessoa.
O personagem de Bernardes também é levemente como Diadorim, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, justamente por ser dicotômico no imaginário desejante de Ramiro. A diferença é que Diadorim é dicotômica no próprio corpo, fingindo ser o que não é à guisa de vingança, e acaba atingindo Riobaldo.
Já Ermira é dicotômica na alma de Ramiro, que está supostamente fingindo para os outros o que ela não é, a fim de acreditar na própria mentira, para se vingar de um possível desprezo amoroso de Ermira.
Há um momento, quase no final, que ele diz: “Não fosse o seu chove-não-molha, me envolvendo em carinhos e agrados sem nunca tomar decisão, tudo em minha vida já estaria em justos lugares”. Aparentemente, é a decisão de fugir com ele, mas não há sinal na frase de que seja isso. Pode ser a decisão que ele espera que ela tome de se jogar nos seus braços.
Amor platônico
Em todo caso, o que há são palavras de Ramiro. Nem se sabe ao certo se ela o procurou uma vez sequer. O que aconteceu entre os dois é o que ele afirma, numa estrada verbal cheia de curvas.
Não há uma carta, um diário de Ermira, ou mesmo um diálogo expressivo entre os dois. Aliás, na única carta que aparece na trama, de Ermira para a Tiá Bruna, lida por Ramiro, ela não o cita, nem por piedade. “Ingrata.”
Ermira, tal como é apresentada, pode ser apenas a miragem do desejo de Ramiro. Como diz Platão, o amor é o desejo do que falta, eis a definição do amor platônico. “Só se ama o de que se carece e o que ainda não se possui”, diz Sócrates em O banquete (tradução de Jorge Paleikat).
Nos sertões como um deserto de almas, a presença de Ermira é um oásis, uma miragem, como sugere o nome. É a figura dos ermos, dos sertões distantes. As ambiguidades em torno dos nomes seguem ainda em minuciosos detalhes especulativos.
Por exemplo, Ermira é quase anagrama de Ramiro. Os dois nomes só não giram em perfeição de encaixe do masculino para o feminino porque Ermira não começa com A. Ou seja, faltou a Ermira o A de amor para se oferecer a Ramiro, e os dois se conjugarem perfeitamente. Por outro lado, pela falta da letra A de amor, seu nome não é anagrama de rameira.
Esse jogo de ambiguidades forjado por Bernardes, que dialoga com duas tradições do romance brasileiro, é o que há de mais sofisticado em Jurubatuba. E a geografia do Cerrado está inserida nesse bojo. Afinal, a grande metáfora desses ermos é Ermira, e a realidade esfuziante dessa narrativa é o Cerrado, que ora aparece como “pedregoso, de capim ralo”. Ora aparece como “croão florido”.
À medida que Ramiro vai se movendo dentro da narração, o leitor vai percebendo um desenho muito bonito da região percorrida:
“Era matar as mutucas, apreciar o sombrio da mata, distrair-me em comparar semelhanças que sugeriam os bordados que as frestas do sol faziam no chão vermelho da estrada. A estrada era bem cortada e chã, o burro marchava com desembaraço e, pela qualidade das árvores, vi que os terrenos iam-se demudando para cada vez melhores de cultura: guarirobal, coqueiro acuri, caetezal e papuã e muitos outros ramos próprios de cultura fresca.”
A tessitura da narrativa cria uma cartografia na qual veem-se a fauna e a flora, e na sua extensão acidentada de rios, serras e chapadões, há os espaços geográficos de fazendas, vilarejos e gente vivendo suas misérias econômicas, mas também sua riqueza cultural de costumes e festas.
Paralelos consagrados
A crítica compara legitimamente o romance Jurubatuba com as obras de Guimarães Rosa e de Carvalho Ramos. Mas dá para encaixar Bernardes como um autor que soube trabalhar esteticamente a partir de fontes que fundaram a literatura moderna, como Marcel Proust, por exemplo, além do próprio Machado de Assis.
Há elementos ali que trazem a marca de um tipo de impressionismo intimamente ligado a essa base. As medidas, na comparação com Proust, são desiguais, mas Jurubatuba não é uma montanha parindo um rato, é uma peça importante e que ainda hoje pode ser lida com relevante apreciação estética.
O tempo é perdido, e constantemente recuperado, nessa narrativa. Além disso, traz à tona uma realidade ambígua e complexa das relações humanas, tanto entre pessoas quanto entre o ser humano e a natureza.
A aproximação estética e de linguagem com Rosa faz-se pelo vocabulário arcaizante, e pelo uso de expressões cunhadas no inusitado do sentido, como em “dorzinha de cabeça manhosa, bambeza”, “pensamento mavórtico”, “o glugoúgo de duas corujas”, “agonia desesperenta”, “chovia um xererezinho”.
Além disso, há os paralelos muito consagrados, como “medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem”, de Rosa; e seu análogo “exigir confirmação, fazer Benedito Amanso obrar um quilo e meio, prele não ser besta. Pensei nisto, mas sem muito ânimo”, de Bernardes.
Ou ainda: “O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano”. Rosa; e o similar: “Medo tenho muito mas é só do bicho homem”. Bernardes. A figura do diabo dentro dos redemoinhos é lembrada também por Ramiro.
Segundo Marianna Torgovnick, em The visual arts, pictorialism, and the novel, o Impressionismo como fenômeno literário geral está “preocupado com a percepção do leitor por meio do ver e, especialmente, com as ambiguidades dessa percepção”. E é isso que ocorre em Jurubatuba, este é seu cerne estético.
Existe algo em tudo isso que é captado na alma do sertanejo do Cerrado pelo autor. Mas há também um verniz estilístico que está inserido numa tradição estética que vem de longe, desde o Barroco, e que chega à modernidade girando e gerando significados e suspeitas dentro do texto.
Por exemplo, há algo de “extravagante, confuso e de estranhamento” do Barroco no texto de Bernardes, intencionalmente colocado ali. No século XX, o Barroco é reinterpretado e reavaliado pelo Impressionismo como fenômeno literário, segundo Arnold Hauser.
De acordo com Haroldo de Campos, em O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira, a estética barroca enfatiza a função poética e a autorreflexividade do texto, aquilo que Octavio Paz chamou de signos em rotação.
Essa manifestação dicotômica, em Jurubatuba, enriquece o texto na forma e no conteúdo, sempre imprimindo as características do Cerrado, tanto em paisagens externas quanto em paisagens internas, em recursos metafóricos que trazem à superfície os relevos da alma do protagonista.
Essa modernidade impressa com vigor poético no romance de Bernardes é cravejada de outras marcas estéticas, variedade trabalhada com precisão numa unidade estilística, como um certo tom gótico nas passagens solitárias de Ramiro, quer durante o dia observando o cemitério de Mocambinho, meio revirado por pebas comedores de defunto que deixam pedaços humanos sobre a superfície, quer marchando à noite cheia de casos de assombração, que o narrador desmistifica, mas que permanecem no ar noturno e suspeito do Cerrado.
Também podemos chamar alguns desses recursos de Impressionismo Cinematográfico, linguagem da qual o narrador tinha consciência, a ponto de comentar: “Os lances daquele recentíssimo passado vão se repetindo ao meu ver e ao meu sentir, no feitio de projeção de cinema”.
Uma passagem no fim do romance traduz bem a linguagem cinematográfica presente na narrativa, quando Ramiro deixa Jurubatuba, e já bem distante, passando a serra, ele diz: “Cheguei lá em cima, no tope do morro, derradeiro ponto de onde se avistava a rebaixa do engenho, a gameleira do canto do curral e um pedaço do telhado da casa da fazenda”.
Janota dos gerais
A descrição do Cerrado é uma pintura barroca. “Os ares estavam embalsamados com o cheiro de tanta fruta madura”. Ou: “Sol de junho, que de tardezinha é moleirão, tinge ruivas no poente e faz tudo ficar amarelo no mundo”.
Mas não há nada mais rococó do que Ramiro. Em termos de visual, é a figura mais extravagante que existe no romance. Quando ele chega ao arraial de Mocambinho, antes de pousar em Jurubatuba, todo mundo começa a olhar para ele e rir.
Ele fica sem entender. “Um pessoal pasmado me encarava com admiração, galinha vendo cobra. (…) Senti que me espiavam e botavam sentido no meu jeitão”. Mas o leitor só vai saber que “jeitão” é esse, por inteiro, duas centenas de páginas à frente, quando ele descreve seus trajes e o burro que ele monta, o Saudoso.
Ramiro entra no vilarejo montado num burro amarelo das canelas rajadas, com crina de miolo preto. Ele veste um terno amarelo, com um lenço de seda verde enrolado no pescoço e as pontas enfiadas num anel de prata. Na cabeça, um “chapéu preto de aba larga e debrum branco”.
O Saudoso está equipado com “arreio cotiano chapeado, pelego roxo mantena de grande, baldrana enfeitada de bambolim e margaridas, laço doze braças na garupa”. Toda a arreata – composta de cabresto, par de rédeas e a cabeçada (onde se prendem o freio e as rédeas) – é feita de sola branca. E Ramiro ainda traz preso à mão seu chicote feito de rabo de tatu. Nas botinas lustradas, rosetas de esporas do tamanho de um pires.
Imagine esse sujeito andando pelas ruas do vilarejo, “todo chibante”, ou sendo visto numa estrada no meio desse Cerradão véi de meu Deus! Depois de se alojar na Jurubatuba, ainda adotou o cachorro Dingo, o fila rajado, que o acompanhou outras vezes na cidade com esses mesmos trajes. Mais rococó do que essa imagem espanéfica, só Fragonard saberia fazer.
Por ser diferente, e podemos dizer que Ramiro era a figura mais diferentona daqueles ermos, frívolo e sofisticado, bêbado com pose de sóbrio, pode ter atraído a atenção de Ermira. Logo, essa relação de sexo desbragado pode ser verdade, pode ser invenção, podem ser as duas coisas misturadas. Eis a literatura.
Pode ser que nosso personagem enigmático seja o que Rosângela Chaves disse na bela análise do texto “Ermira, um enigma”, de 3 de junho de 2016 (http://ermiracultura.com.br/2016/06/03/ermira-um-enigma/), nesta revista: “Ermira não é nenhuma tirana ingrata, como ele a acusa, mas uma fêmea em sua plenitude que só quer aproveitar o melhor da vida. E o melhor da vida, para ela, é ter um amante jovem e ardente, como Ramiro, sempre à disposição, sem abdicar da fachada respeitável de ‘senhora-dona’ casada, ao lado do marido mais velho.”
O fato é que Ramiro se dedicou à mulher de seo-Simeão mais como um cão fiel mesmo, enquanto ela agia, provavelmente, feito uma dona para com seu vira-lata, como ele próprio sugere em algumas passagens.
Quando tudo havia acabado, ele disse, por exemplo, que ao ir para a cidade com a prima Hosana, após o enterro do marido, ela sequer se despediu dele. Nem ao menos pronunciou “uma única palavra ou aceno, como quem diz: ‘fica, cachorro!’” A suposta indiferença tem outras implicações que o leitor saberá lendo.
Há em Ermira um senso de liberdade absoluto, praticamente silenciado pela voz de Ramiro, mas não pela intenção de Bernardes, que concentrou esse atributo no vulto poético do título do romance. Rosângela Chaves não chegou a falar nesses termos, mas captou muito bem o significado sugerido do personagem.
Segundo o historiador, geógrafo e engenheiro afro-brasileiro Teodoro Sampaio, no livro O tupi na geografia nacional, Jurubatuba quer dizer “lugar onde vivem as juruvas”, uma bela ave de penachos coloridos, conhecida por sua “voz” grave (assim como grave era a voz de Ermira), que gosta de cantar pela manhã e à tardezinha, cujo hábitat natural são os espaços arborizados e sombrios.
Ramiro se perdeu nas tardes mornas e cheias de sombras da Jurubatuba, no pé da serra, à beira de um rio: oásis, veredas. “Tantas visagens dizem que aparecem nesses lugares ermados”. Ermira, tal como ele a pinta, pode ser uma dessas visagens, miragens refrescantes.
Ermira, minha borboleta, meu conceito de jardim, minha tesourinha-do-campo, insondável abismo devorador de meu ser inteiro, ternura derramada na minha alma, domadora de minha fúria, Ermira, ah-eu em seus-braços, ímã dos meus olhos, minhas veredas, meu pé de sempre-lustrosa, sombra polidora de meus desejos. Adeus!