“Eu sempre achei que esse gato tem cara de fujão…” − comentou a garotinha mais velha, ao mesmo tempo em que tentava ordenar um quebra-cabeças composto de figuras geométricas.
“Eu não acho que Manchinha vá fugir daqui, não” − respondeu a mais nova, e acrescentou:
“Ele já se acostumou com a casa e a gente. Se um dia ele sumir, juro por Deus, que prefiro morrer. Manchinha é toda a minha vida!” − foi o que arguiu, dizendo a frase em tom solene, a voz meio embargada.
As duas meninas estavam brincando e conversando debaixo de um caramanchão cujas flores no alto eram de uma trepadeira folhosa.
Manchinha era o nome do gato siamês que, naquele momento, dormia em cima de uma almofada largada adrede sobre o piso. De vez em quando, como não era bobo, abria os olhos e examinava o ambiente que o envolvia. Considerando que não havia nada de esquisito e ameaçador ao seu redor, fechava-os novamente e voltava à sua indolência.
Às vezes, se alongava num movimento gracioso e, em seguida, procurava outra posição, que incluía um novo repouso em posição mais relaxada e confortável.
As duas crianças nunca se esqueciam do dia em que ele apareceu no portão da casa. Era um gatinho recém-nascido, faminto e abandonado, miando em pânico, à procura de socorro.
Em pouco tempo, assim que resgatado, foi adotado e recebeu as melhores atenções, todos os dias. Por causa das manchas escuras que tingiam as suas extremidades, foi batizado com um nome óbvio:
“Manchinha.”
Sem pensar duas vezes, a mais nova perguntou, como se recapitulasse uma lição:
“Será que Manchinha sonha com o Egito?”
“Deixe de ser boba… Se ele sonha com alguma coisa, deve sonhar com ratos, passarinhos, pires de leite, ração de atum…” − a irmã não economizou a relação de itens.
Mas a menina de olhos alegres e incendiados insistia nas perguntas, com a sua curiosidade vívida:
“Então, por que os gatos foram antigamente animais sagrados?”
Antes que a outra pudesse responder, a porta da casa rangeu e chamou a sua atenção.
Com voz de contralto, a cozinheira avisou:
“Meninas, o almoço tá pronto!”
Quando elas ouviram a chamada, saíram correndo em direção à casa, ambas gritando que estavam morrendo de fome.
O caramanchão oferecia uma sombra ampla que cobria os bancos de pedra e protegia dos raios solares diversos brinquedos espalhados pelo piso. No lado mais próximo das folhagens do jardim, deitado preguiçosamente sobre a sua almofada, o gato siamês abriu os olhos porque deixou de ouvir a voz de suas amigas.
Com o intuito de juntar-se a elas, levantou-se elegantemente e seguiu em direção à porta da cozinha.
No caminho, pensou pela primeira vez na vida gloriosa e burguesa que desfrutava no núcleo daquela família que o tratava bem desde a sua adoção. Um bichano deve ter motivos para reclamar, sobretudo quando a sua vida está exposta a riscos. Por tantos motivos, era um gato feliz, pois não tinha nenhuma demanda, nenhum desconforto e nenhuma ameaça.
Para dizer o mínimo, um gato de sua linhagem jamais poderia aceitar a humilhação de lutar pelo seu próprio alimento. Sujeitar-se aos perigos da rua, dos carros, dos cães agressivos e das crianças retardadas estava fora de cogitação; antes, pelos carinhos que recebia diariamente, era preferível tornar-se um gato preguiçoso e gordo de sofá do que um gato magro e faminto largado nas calçadas ou, como sói acontecer, na pior das hipóteses, um gato esmagado no asfalto.
E, agitando graciosamente o rabo, sem nenhuma pressa, concluiu:
“Alguns gatos nascem com mais sorte do que outros…”
A sua reflexão, porém, não foi muito longe porque a menina mais nova começou a chamar o seu nome − afinal, ele, o Manchinha, tinha também de almoçar, e a sua comida naquela casa era de excelente qualidade.
Muito bom! Gatos são os xodós dessa família!
Você sacou o lance; é por isso que te reverencio. Loura, nada.