[Coautores: Alberto Mesaque Martins[1] e Weiny César Freitas Pinto[2]]
No ano passado, o cientista político Simon Schwartzman publicou o artigo Pesquisa e pós-graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?, um escrito que parece não ter recebido a repercussão que merecia. O texto nos proporciona refletir sobre questões inquietantes e que tocam especialmente a nós, pessoas vinculadas ao meio acadêmico: deveríamos mesmo remodelar o sistema brasileiro de pesquisa e de pós-graduação? Os mestrados deveriam ser voltados para quem apenas pretende crescimento e aprimoramento profissional, e os doutorados deixados para os “verdadeiros pesquisadores”, estes mais aptos a produzir ciência de excelência e de impacto?
Para o autor não resta dúvida: se há evidências de que a pós-graduação no Brasil sofre de anomalias, é então necessário separar mestrado e doutorado, de forma que para este último sejam direcionados os investimentos públicos e, para aquele, o financiamento privado e/ou particular deveria ser a forma predominante de subsídio. Tal proposta advém da tese de que, no Brasil, pós-graduação e pesquisa não são coisas equivalentes, ou seja, não devem ser tomadas como sinônimos, pois nosso sistema de ensino superior produz pouco conhecimento científico e tecnológico capaz de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país (SCHWARTZMAN, 2022).
Por meio de dados coletados de órgãos governamentais, o cientista político fornece algumas constatações importantíssimas. Destacamos aqui três delas: 1) todos os maiores e principais centros de pesquisa e pós-graduação do Brasil são universidades públicas, financiados, portanto, com verbas de todos nós, cidadãos e cidadãs brasileiros; 2) a maior parte das pessoas que fazem mestrado, sobretudo os da modalidade profissional, o faz com a expectativa de trabalhar nas áreas de “Ensino e Pesquisa”, que, como o próprio artigo demonstra, são majoritariamente custeadas pelo Estado. Assim, pode-se inferir que estes mestrandos buscam mais o crescimento profissional do que propriamente produzir ciência de excelência; 3) decorrente destas duas constatações, é como se estivéssemos favorecendo a reprodução de uma casta (SCHWARTZMAN, 2022). Isso porque os pós-graduandos, como grupo social, por via de regra, são economicamente privilegiados em relação à enorme camada populacional que mal concluiu o Ensino Médio, de modo que tal grupo se retroalimenta por meio da formação “gratuita” proporcionada pelo Estado, alavancando suas carreiras profissionais.
O grande problema dessa situação é que o próprio Estado absorve a mão de obra especializada que ele forma, sobremaneira nos serviços de educação, saúde e serviços sociais, atividades que bem sabemos sustentam-se predominantemente via poder estatal. Esta é a realidade de 75,8% dos doutores e de 44,2 % dos mestres (SCHWARTZMAN, 2022, p. 244). Em suma, quanto mais a pessoa avança nos estudos, maiores são as possibilidades de ela conseguir ocupações dentro do setor que financiou sua formação (no caso, o Estado), inclusive recebendo bolsas. Isso ocorre porque o nosso país é extremamente dependente, econômica e tecnologicamente, de outros países mais desenvolvidos, de forma que não possuímos setores capazes nem de absorver a mão de obra formada pelas universidades nem interessados em arcar com essa formação. Schwartzman chega a apontar para estas causas, porém não as desenvolve, apenas as deixa no ar. Suas sugestões são bastante pragmáticas e de caráter burocrático-administrativo, como, por exemplo, reduzir o número de professores em regime de dedicação exclusiva. Desse modo, ele parte logo para outra provocativa e apressada sugestão de:
[…] transformar os mestrados em cursos destinados predominantemente à qualificação profissional para o mercado de trabalho mais amplo, com menos regulação, e facilitar o acesso direto aos doutorados, sem passar pela etapa intermediária do mestrado acadêmico, a estudantes altamente qualificados, ainda jovens, que pretendam se dedicar à atividade de pesquisa e docência de excelência ou a atividades profissionais de alta complexidade. (SCHWARTZMAN, 2022, p. 241).
Apesar de pragmática, sua ideia é radical: os mestrados, que na prática teriam por objetivo essencialmente a qualificação profissional, deixariam de receber investimentos de verbas públicas e, assim, os grupos sociais interessados em adquirir maiores vantagens pessoais e profissionais passariam a arcar com os custos disso. Os programas de doutorado, por sua vez, receberiam investimentos e incentivos do Estado, de maneira a fazer deles polos de inovação técnico-científica, detentores das mentes mais brilhantes para aumentar o potencial competitivo do país. Baseando-se na evidência de determinados indicadores – como a baixa quantidade de programas de mestrado em nível de excelência –, Schwartzman (2022) está propondo o rompimento entre a produção de pesquisa e a pós-graduação, haja vista o potencial caráter dispensável dos mestrados para a ciência brasileira. Trocando em miúdos, na perspectiva do autor, teríamos muita pós-graduação e pouca pesquisa com retorno social.
Ora, sem retorno em níveis desejados, como fica o contribuinte brasileiro, que acaba custeando quase tudo? Com essa pergunta como pano de fundo, as indicações de Schwartzman nos parecem fazer bastante sentido, e como membros da comunidade acadêmica, ela não deixa de nos inquietar profundamente.
Estamos devolvendo à sociedade o que ela investe em nós? Observada nossa condição de nação subdesenvolvida, onde os recursos orçamentários são limitados, muitos de nós não deveríamos, humildemente, reconhecer que nossas pesquisas não são assim tão importantes para o futuro do país? Elas de fato contribuem para a construção de um país soberano e independente? Nesse sentido, quais prioridades deveríamos elencar e em quais setores estratégicos investir?
Se nos propusermos a responder a tais questões, estaremos entrando na esfera do pensamento ético-político. Para adentrar nesta perspectiva, seria indispensável para as universidades terem clareza de seu papel em consonância com o que é esperado pela sociedade e pelo planejamento estatal que as envolve. Obviamente, a rigidez e o controle dessa remodelagem institucional exigem disciplina e capacidade dos sujeitos em renunciar às vaidades pessoais e a seus pequenos desejos, de forma a compreender que as prioridades do coletivo se sobrepõem às individuais.
Porém, é fundamental esclarecer que priorizar o que é indispensável para o país não significa valorizar somente os aspectos técnicos e instrumentais do conhecimento, ou então uma ou outra área em detrimento das demais. Com efeito, áreas tão díspares, como ciência e filosofia, têm em comum a preocupação fundamental de responder, resolver ou dirimir problemas que a realidade natural e social coloca ao homem. É por esse caminho que uma reconfiguração da pesquisa brasileira poderia ser mais eficazmente viabilizada, isto é, como meio estratégico de resolver os mais candentes problemas nacionais, que não são exclusivamente técnicos e instrumentais. Ora, a principal reforma sempre é, em primeiro lugar, uma “reforma do pensamento”, e aqui não há contribuição maior senão a da filosofia e a das ciências humanas em geral.
Portanto, ao focar na mera redistribuição de recursos, Schwartzman reduz o problema da pouca eficiência da ciência brasileira a questões técnicas, burocráticas e administrativas, pouco considerando os fatores políticos e culturais altamente envolvidos e decisivos para o debate. Afinal de contas, é disso que se trata quando falamos de independência e soberania nos âmbitos da ciência, tecnologia e economia. Ter projeto de país envolve decisões não apenas “do” coletivo, mas também “para” o coletivo.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
[1] Psicólogo, doutor em Psicologia, professor adjunto na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: alberto.mesaque@ufms.br
[2] Professor do curso de Filosofia e do Mestrado em Psicologia da UFMS. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o 12º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
Não sei se é fato ou lenda, mas conta-se que a rainha Vitória teria visitado o laboratório de Michael Faraday. Após conhecer suas pesquisas, teria lhe perguntado: “Mas afinal, para que serve tudo isso?”. Ao que Faraday lhe respondeu com outra pergunta: “Para que serve um bebê?”.
Não dá para iniciar pesquisa básica com garantia de quanto vai retornar à sociedade. É certo que, na justificativa dos projetos, normalmente se especula o potencial daquilo que se pretende pesquisar, mas nada é garantido. Justamente por isso, é muito difícil a iniciativa privada ter viabilidade de bancar pesquisa básica, é arriscado. Mas em uma nação que financia diversas pesquisas básicas, é extremamente provável que algumas delas sejam tão produtivas a ponto de bancar o custo de todas, e ainda gerar excedente, deixando este povo mais próspero (ou, no mínimo, menos precário).
Este artigo tem um grande erro ao apontar como problema o fato de que aqueles cuja formação é bancada por recursos públicos vêm depois a serem empregados no próprio serviço público. Na verdade, o problema não são os 44% de mestres e 76% de doutores que depois vão para o serviço público, mas sim os 66% de mestres e 24% de doutores que não vão. Na formação destes, e não daqueles, é que o estado investe, mas não chega a colher os frutos. Mas isso também não chega a ser fundamento para condenar todo o sistema! Ora, quando se queima combustível nos cilindros de um veículo, cerca de 2/3 da energia é perdida em forma de entropia, ineficiências são parte inevitável da realidade. Podem ser reduzidas, mas não completamente eliminadas. Não se joga fora um carro só porque ele não converte 100% da energia química do combustível em cinética, nem se descarta a agricultura só porque a fotossíntese não usa 100% da energia solar incidente sobre as folhas. Não tem sentido pensar em deixar de investir em formação dos profissionais só porque menos de 100% deles permanecerá no serviço público. Aliás, aqui está outro ponto importante: o investido na pós-graduação não retorna só pelos próprios trabalhos de pesquisa dos mestrados e doutorados, nem só pela formação (ou seja, pelo que o profissional produzirá depois, quando melhor qualificado), mas por ambas as vias. É simplório analisar só um desses retornos como se fosse a totalidade.
Finalmente, a ideia de separar mestrado e doutorado parece interessante, mas pouco realista. As pessoas precisam de recursos. Ao pagar pela satisfação de suas necessidades básicas, justificativa não é aceita na prática como se dinheiro fosse. Por isso, se os doutorados continuarem públicos, mas os mestrados se tornarem pagos, a maioria dos egressos da graduação vai ao menos tentar o doutorado, independente de onde pretende trabalhar no futuro. Entre os que não conseguirem entrar no doutorado (porque o sistema determinará maior concorrência neste), muitos irão ao mestrado com a ideia de “quebrar o galho”, igual aos alunos de graduação privada, que lá estão só porque não conseguiram passar na pública. E isso será mais um fator a reforçar o imenso contingente de profissionais arrependidos da escolha que fizeram lá atrás, pois gerará mais um estímulo para que os profissionais façam esta ou aquela escolha, estímulo este sem nenhuma relação com a aptidão pessoal deles. Concluindo, o sistema com certeza tem seus problemas, a “solução” pensada vale como ponto de partida para reflexão, mas torcemos sinceramente para que não se realize tal como proposto, porque certamente a “solução” resultaria muito pior do que o problema.
Comentário de Rafael Lopes Batista (rafael.lopesbatista@hotmail.com), postado por Rosângela Chaves:
Olá, José! Obrigado pelo comentário. Vou fazer apenas algumas colocações para avançar o debate.
O texto é pretende ser justamente apenas uma pequeníssima contribuição para COMEÇARMOS a trazer ao debate público a necessidade de rever o funcionamento da pós-graduação e da pesquisa brasileiras. A ideia central também é de que as pessoas leiam o texto de Simon Schwartzman, pois é ali que os dados e argumentos estão detalhados, ele é a fonte do nosso ensaio. No geral, concordamos com o diagnóstico de Schwartzman, mas, de fato, suas soluções propostas nos parecem reducionistas, um tanto limitadas, e por isso devem ser colocadas em questão.
Sobre o ponto de que 100% dos mestres e doutores deveriam ser empregados no serviço público, creio que não ficou clara sua argumentação. Se politicamente mal conseguimos travar o andamento de uma reforma administrativa que visa reduzir o tamanho do Estado, como expandir tanto o funcionarismo público num contexto de capitalismo dependente? Estatizando toda a economia? Bom, aí viveríamos uma verdadeira revolução!
Outra dúvida que suas posições suscita mas não responde: de alguma maneira, as empresas privadas não poderiam ser obrigadas a investir em formação superior de seus funcionários, se tornando corresponsável ao menos pelos setores estratégicos da economia? Ora, parece justo dividir essa onerosidade com o Estado, já que o retorno contemplará também a própria iniciativa privada. Há riscos aí? Claro, mas a lógica é mais ou menos a mesma que você apontou: os desperdícios são inerentes ao sistema, não é possível eliminá-los totalmente. Inclusive, o risco é um dos pressupostos elementares da lógica liberal do empreendedorismo. No nível individual isso também se aplica, pois as pessoas de melhor condição socioeconômica poderiam sim arcar com os custos de sua qualificação profissional, deixando o Estado focar em quem pretende fazer pesquisa de excelência e de potencial impacto.
Longe de pretender trazer soluções fáceis e universais, o ensaio acima é a externalização de uma preocupação que tem se evidenciado nos últimos anos, isto é, que o ensino superior e a pesquisa de alta qualidade não estão caminhando no mesmo ritmo das condições estruturantes do desenvolvimento técnico e científico, como a economia e a educação básica. O Estado brasileiro expandiu fortemente as oportunidade de pós-graduação de uma maneira que quase beira o anárquico, sem um planejamento criterioso de longo prazo.